Bemdito

Espaço e encenação em Kiyoshi Kurosawa

A encenação para Kurosawa significa a existência: é uma noção básica do cinema, só existe aquilo que se encontra em quadro
POR Cauby Monteiro

Dentro de um campo cênico, só podemos ver aquilo que nos é dado a ver. Aquilo que permanece entre a objetiva e o mundo sensível, o denominador comum dos dois. O expressionismo alemão demonstrou que o que se vê pode estar imbuído de significado, o espaço destituído do absoluto realismo, mas ainda assim uma representação do mundo, só que agora forçadamente colocado como uma continuação da mente de seu criador. Sobre Fausto, de F. W. Murnau Eric Rohmer escreveu:

“Nesse filme, enfim, Murnau, no ápice de sua carreira, soube e pôde colocar em obra todos os meios capazes de lhe assegurar esse controle total do espaço que nós falaremos. Todas as formas, tanto aquelas dos rostos, dos corpos, dos objetos, quanto as da paisagem ou dos elementos naturais – a neve, a luz, o fogo, as nuvens -, são modeladas ou remodeladas a seu prazer com uma ciência consumida de efeito. Jamais uma obra cinematográfica especulou tão pouco com o acaso. (por citação e colocar dentro das normas)”

Essa maestria do espaço, controle do mundo, foi o que regeu não só os filmes do expressionismo alemão, mas também aqueles que foram feitos durante o cinema clássico americano. Os enormes estúdios construídos no período tinham como utilidade dar vazão à imaginação daqueles com a função de repensar o mundo, partindo dele, mas refazendo-o para melhor exprimir seus sonhos.

A chegada do cinema moderno e o crepúsculo de uma forma de se produzir cinema e de se olhar o mundo levaram as objetivas para as ruas, para as casas e apartamentos, onde o que se via era uma interrupção da vontade de recriar os espaços e uma ânsia de redescobrir os espaços, vê-los sem máscaras, como eles eram. Rossellini demonstra isso claramente, por exemplo, no Viagem à Itália, em que os personagens são engolidos por aquele quadro da realidade.

Kiyoshi Kurosawa responde às perturbações criativas de como trabalhar o espaço com um cinema que busca ligar essas duas tradições. Ao mesmo tempo, um cinema claramente pobre (seu lugar de aprendizado, além das salas de cinema e cineclubes que vorazmente frequentou na década de 70, foi o V-Cinema), ou seja, um que não se permitiria o luxo de reconstruir espaços, de trabalhar com sets e poder usar o tempo que fosse à construção de um novo local. Mas também, aceitando os seus limites, seus filmes retrabalham o que lhe era dado, para assim transformar os espaços pré-existentes em uma passagem à mente de seus perturbados personagens. 

Em DOA 3 e Guarda do Subsolo, por exemplo, os espaços impessoais dos escritórios e dos prédios comerciais são subvertidos para se tornar um campo de horror. As luzes que vêm da janela, o ar abafado, tudo é construído minimalisticamente para causar uma sensação de prisão, de domínio de outra coisa que não se vê, mas está no subsolo, subatômica. Os planos abertos de uma Tóquio quase sempre vazia, inabitada, as construções reais de prédios, parques, escadarias, servindo como formas geométricas precisas, a emoldurar as figuras humanas.

Para atingir esse nível de relação com o espaço, Kurosawa trabalha em dois momentos. Primeiramente, uma prospecção de espaços que sejam compatíveis com o que ele deseja pro seu filme. Os arredores de Tóquio, prédios decadentes, a floresta de Charisma emanando uma estranheza imanente às árvores, folhas no chão, uma decadência da natureza em si.

O outro é, com o espaço mais próximo do ideal possível, trabalhar com seu diretor de arte (habitualmente Maruo, que vem atuando junto a Kurosawa desde os tempos do V-Cinema) uma forma de organizar aquele espaço, de maneira a criar nele ao mesmo tempo algo imediatamente reconhecível, mas que seja estranho de uma certa forma. No filme Vítimas de uma alucinação, a delegacia de polícia é construída em um armazém abandonado caindo aos pedaços, tal qual o personagem principal.

Existe agora o espaço, o mundo pelo qual transitará os personagens, se desenvolverá a narrativa. Porém, para tornar esse mundo legível, é necessário que ele seja sintetizado pelo seu criador através da encenação (a mise-en-scène). É quando o realizador escolherá onde colocar a sua câmera e, dentro desse recorte, como os objetos e os atores se comportarão e se relacionarão entre si.

Em Kurosawa, esse aspecto fílmico é fundamental. Ela, a narração, também se forma através daquilo que talvez seja o grande paradigma de Kurosawa: o estranho conhecido. Ela é ao mesmo tempo cristalina e narrativa, e também obscura e simbólica. A escolha da posição dos enquadramentos beirando o hawksiano e ainda assim imbuído de um ponto de vista diferente e opaco. Seus personagens nunca estão completamente à vontade nos ambientes em que Kurosawa os põe.

Geralmente, é um processo de descobrimento (Guarda do Subsolo, Charisma e Kairo) de adentrar o desconhecido. Eles ou são completamente estáticos, ou movem-se rápido. Há em seus planos a dose de fascinação e de terror, sintomática daqueles que sofrem mudanças, que têm que se desprender de suas antigas formas para assumir novas, onde tudo é novo e aterrorizante (Licença para viver, Cure e Kairo novamente).

Kurosawa é mestre dos longos planos também, alguns que chegam a minutos. Ele gosta de ver seus personagens se moverem nos espaços milimetricamente calculados. Acredita em uma relação ontológica, quase baziniana, na duração do tempo dos planos. Em Kairo, a maior evidência da existência daqueles fantasmas é o fato deles permanecerem em quadro, não importa quanto tempo durem, eles estarão lá, habitam aquele espaço.

No fim, a encenação para Kurosawa significa a existência. É uma noção básica do cinema, só existe aquilo que se encontra em quadro. O que está fora é o devir, a potência de algo que ainda não tomou forma. O medo vem disso, daquilo que ainda não adentrou o espaço.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.