Bemdito

O ano de 2020 em 20 semanas de cinema

O cinema como ponte: sobre filmes que nos ajudaram a sobreviver a 2020
POR Olivia B. de Avelar
(New York Movie, Edward Hopper)

O cinema como janela: essa comparação, analogia, metáfora, ilustração. Em tempos mais amenos, queremos e podemos buscar na grande tela algum ânimo e ar para pequenas e maiores questões que nos engasgam e nublam os dias e as prospecções presentes/futuras/perenes. Há março de 2020. A humanidade frenética meteu-se um freio nos pés e nas ânsias.

Estou escrevendo em 2021 e muita gente ainda não conseguiu entender sobre o que se trata uma quarentena. Alguma coisa sobre quarenta dias e a passagem bíblica sobre Jesus e o deserto – e a solidão e a fé e o sofrimento – inunda a tela mental de tantos brasileiros e tantas brasileiras, cujas referências imagéticas residem quase todas nos frames sacros e em suas interpretações pessoais dessas personas. De fato, só mesmo o agora já um eco repetido em nossa memória auditiva: fique em casa. Na sua própria casa.

Abruptamente, a pandemia nos obrigou a estar em nossa mais recôncava presença: o lar, as paredes, os objetos, as pessoas, as memórias, as curvas mais fechadas daquilo que somos e não queremos ver. Porque dói. São os atrativos mundanos e exteriores que nos distraem. Mas em 2020, que nos destruíram. Se a humanidade deu errado? Salvam-se os filmes. 

O cinema como espelho: porque encarar a realidade a olho nu queima as retinas. Precisamos da caixa escura e do formato seguro. Nos diluímos no breu e esquecemos nossa individualidade e vicissitudes e assistimos aos outros lugares onde não estamos e às outras pessoas que não somos, como animais que espreitam a presa. No tempo que dura um filme, nos assistimos, indiretamente. A projeção nos projeta – nos lançamos, cena após cena, filme após filme: “eu, caçador de mim.”

Nós, professores, lançados de súbito à rotina do ensino remoto: se a sala de aula cansa de tanta vida pra dar conta, quando falta a aula faz-se um buraco e nos sentimos cansados pelo avesso: porque não havia nada dentro de casa que nos estimulasse e preocupasse ininterruptamente e com a magnitude da nossa costumeira rotina. Enquanto, lá fora, o mundo era uma imagem solitária, dentro de cada um de nós ainda estavam todos os alunos disfarçados e intangíveis. Fazendo barulho de silêncio.

Cinema como ponte

O cinema como ponte: se não há o juntos no mesmo espaço podemos criar o juntos no mesmo tempo – tempo interno. As baleias emitem seus sons vibratórios que, quando recebidos por outras baleias, a muitas águas de distância, são sentidos e, talvez por isso, não precisem ser entendidos. Quem sabe, a necessidade que se fez ideia-proposta fosse, intuitivamente, essa: sinta o que eu estou sentindo.

Mais uma vez, a arte fílmica nos salva. Nossos sinais/decibéis mudos, enquanto sorvíamos os filmes, se propagando pelas gotinhas de água no ar. Como crianças segurando aquelas latinhas que, ligadas por um fio, acariciam a comunicação e a imaginação.

Vê bem, a imagem mental e afetiva que tenho de crianças com walkie talkie de latinhas veio inteiramente do cinema: nunca brinquei ou vi amigos brincando com essa engenhoca aqui, na vida fora da tela. Apenas um dos zilhares de detalhes sobre mim que eu nunca vivi, mas que o cinema me mostrou e eu guardo como se fosse uma memória inteiramente minha.

O cinema como homeopatia: porque a política, a sociedade, as notícias e as atitudes dos outros são putamente alopáticas. Se as notícias te informam, te deprimem. Se a política te ferra – ela só te ferra mesmo. E se o inferno são os outros, nós somos o quê?

Podemos aprender sem sofrer tanto. Podemos pensar sem negar a experiência. Podemos ser e estar tudo que nos encanta e fere, mas, que nesse ínterim, a fotografia cinematográfica nos permita a beleza, a trilha sonora nos presenteie os ouvidos e a edição nos faça o sentido.

Escrevo em junho de 2021 – 76 filmes depois desses créditos iniciais que, ao situar e contar na tela do tempo, fiz subir, com minhas palavras, nessa tela pessoal à qual nos agarramos por boa parte do dia. 76 filmes que assistimos durante as 20 semanas de cinema que nos ajudaram a sobreviver ao ano de 2020.

Esta é a história que pretendo contar aqui, a partir de hoje. Mas, essa é só a abertura e muita coisa ainda não aconteceu: muita merda, muita graça, muita revira e muita volta – dentro em nós e fora no mundo.

Nos 24 frames por segundo – que é nossa unidade de medida do tempo nesse clube do filme -, ainda é março de 2020. Quatro amigas, quatro professoras, quatro quarenteners: é março e estamos apenas começando a escrever esse roteiro que, depois de um dos mais inesperados plot twists da nossa filmografia identitária, viria a ser criado e nomeado como: 3×4 Filmes – três filmes por semana, quatro amigas juntas.

(É agora que a história começa, mas dá tempo de pegar a sua pipoca).

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.