Bemdito

Eu, caçador de mim

Impressões de um filme sobre os piores medos e o melhor caminho para enfrentá-los: a honestidade
POR Olivia B. de Avelar

“É uma ideia que talvez faça rir, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade.”

Albert Camus 

A pandemia nos forçou a cavar nossos barros, a desenterrar nossos guardados, a espanar nossos ossos; retiradas todas as camadas de poeira sobre todos os espelhos da casa e da alma, ao nos exilarmos do mundo, nos tornamos, forçosamente, paleontólogos do eu – esse abismo nos olhando de volta no escuro, dilatando, a cada dia, sua companhia e sua presença feita de silêncio eloquente e breu. 

O quanto de nós mesmos e do que chamamos de vida não passam de castelos de areia egoicos, decorados com distrações caras e supérfluas e devorados pela busca incessante de penduricalhos que emulam vontade e sentido? Nossos insaciáveis e estimados monstros – que alimentamos tão profusamente e com tamanha sofreguidão que já até nos esquecemos se somos nós que os temos ou se são eles que nos têm – tomaram conta da casa durante a quarentena e afiaram as garras, e trincaram os dentes e mostraram a língua: exigiam suas mordomias de volta! 

Alguns deles, os mais vaidosos, descobriram, pelo noticiário na TV, que as asas pintadas nas paredes das fotos são feitas de tijolos e que não servem para voar. A pandemia, feito o sol de Ícaro, derreteu todas elas e fez muita gente cair de cara no chão. Outros, os mais famintos, começaram a se perguntar, reafirmando suas próprias convicções como quem não quer terminar de roer os ossos e as sobras de uma soberba refeição: se existem, durante a vida, tantas opções para serem experimentadas, por que eu sou obrigado a escolher? Por que sou obrigado a abrir mão daquilo que não foi escolhido? Esses não queriam perder nada. Esses queriam muito de tudo.

Afinal de contas, onde vivem os monstros? Um filme sobre um menino faminto. Os monstros de Max moravam na barriga: sempre roncando e sempre com fome. Moravam no peito: onde ele queria fazer caber, a todo custo, uma mãe que vivesse só para ele, uma irmã que nunca crescesse e que não tivesse outros amigos, um pai que nunca fosse embora. Moravam na garganta: sempre gritando exigências e denunciando a solidão. Moravam nos olhos: sempre à espreita para se comparar, para se medir, para desejar e para se encher e se desfazer em lágrimas. 

Os monstros de Max o devoravam vivo porque crescer dói. E será que alguém, durante nosso isolamento, conseguiu crescer como Max cresceu? Será que conseguimos nos sentar em roda e olhar para as nossas criaturas com a honestidade necessária para crescermos com dor, porém com dignidade? É preciso honestidade, e não força, para domarmos nossos monstros, pois é quando nos adulamos sem limites que nos deformamos por dentro. Porque é de tanto olharmos só para dentro que nosso isolamento dá aos monstros uma casa insuficiente e insatisfeita, exatamente por ser toda feita de espelhos.

Para a última semana do clube do filme: a honestidade. Um filme sobre uma criança assustada que enfrentou seus monstros em uma terra perigosa, durante muitos dias confusos, auto isolada do mundo que conhecia, do mundo que ela acreditava ser todo seu.  Um filme sobre o que todos nós fomos, sobre tudo que nós somos, diante da imensidão que nos foge ao controle e ao entendimento, mas que não escapa dos uivos e do choro vindos das nossas emoções. 

Se a natureza é sábia ou cruel, acredito que ela nos seja, na verdade, indiferente. O isolamento, a pandemia, as mortes, os cretinos, os que aprenderam algo com tudo que vivemos e os que se lapidaram para ser ainda mais obtusos: somos, ao mesmo tempo, todo um universo de vontades e comiserações humanas, que nos projetam ao infinito e nos habilitam a sonhar, mentir, chorar, ter vergonha, amar, criar, inventar e enganar – a nós mesmos e a todos os outros. Mas, ao mesmo tempo, somos insignificantes e pueris – diremos adeus como quem assopra uma vela. 

O equilíbrio é como uma corda que se estende entre dois extremos: céu e inferno. Vida e morte. On e off. E nós, os equilibristas, usamos tudo que está ao nosso alcance como pequenas e frágeis sombrinhas que, ingênua e utopicamente, nos concedem a precária estabilidade enquanto tentamos nos defender do furacão. Doces ou atrozes. Mansos ou ferozes: somos frágeis e a vida é rara. Que isso tudo que vivemos em uníssono com todo o planeta e, ao mesmo tempo, na mais profunda e assustadora solidão, nos arranquem as cascas e nos insufle com a vontade de descobrir aquilo que nos faz sentir – e não só parecer – vivos.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.