Bemdito

O acidente da sedução

Uma crônica sobre a irresistível arte de paquerar e ser paquerado
POR Raisa Christina
Henri Cartier-Bresson

A sedução dos olhos. A mais imediata, a mais pura.
A que prescinde de palavras; só os olhares enredam-se
numa espécie de duelo, de enlaçamento imediato,
à revelia dos outros e de seus discursos: discreto
fascínio de um orgasmo imóvel e silencioso.

Jean Baudrillard

Gosto de paquerar, da prática em si e também da sonoridade do verbo, que faz explodir na boca as duas primeiras consoantes, depois vibrar a língua para finalizar com os lábios abertos, num prolongado “ar”. Flertar pode soar meio blasé, suave, indireto, um tanto cortês, como se faltasse fricção entre as partes.

A paquera é uma espécie de sede, caça, gozo dos observadores caminhantes. Sim, desconfio que os caminhantes sejam melhores paqueradores. Trata-se do esporte daqueles que percorrem os pormenores do terreno, que retardam a queda ou deixam o prazer planar sem pressa, quase distraído, atravessando livremente o espaço.

Desenho gente porque paquero e paquero porque desenho gente, não sei que ação antecede a outra. Talvez ocorram simultaneamente. Minha proposta nesta crônica, no entanto, não é discorrer sobre o desenho de observação, mas abrir uma brecha para conversarmos mesmo sobre a paquera, uma atividade comum e ao mesmo tempo pouco abordada na dinâmica da maioria dos relacionamentos amorosos. 

O desejo, essa palavra que enseja mundos e curiosamente guarda pontos de conexão com o termo “desenho”, é motor de vida. Quando desejo, sou afiada e minhas fragilidades, expostas. Ao mesmo tempo, sinto ultrapassar as dimensões físicas de meu próprio corpo. Tal sensação me torna de algum modo forte, justo eu, alguém que ainda não pesa o suficiente para doar sangue. Acontece algo parecido quando me sinto desejada e sei que esse conjunto de forças me faz bem.

Há quanto tempo você não paquera? Nesta retomada que estamos vivendo agora, ainda com certa cautela – parte de nós, ainda temerosa -, que figuras desconhecidas ou velhas conhecidas lhe fisgam a atenção? Você consegue demorar-se dentro do olho de alguém? Quanto tempo é suficiente para vascularizar os membros e dar-se o arrepio? Se concordamos que paquerar faz bem, penso que devemos naturalizar a lida com esse assunto na relação com parceiros e parceiras.

Não sou capaz de descrever o que acontece durante os segundos em que certos olhares se enlaçam. Quem percebe primeiro? Que traços se alteram em nosso rosto? Que gesto ou palavra pode quebrar o encanto? Sei que um pequeno lago evapora toda vez que duas pessoas engolem juntas o mesmo ar, envolvidas pelo erotismo do encontro fortuito. 

Cada arranjo amoroso se dá com muitas variáveis, mas todos compartilham o risco dos acasos. No relacionamento, não adianta tramar regras cheias de nós, esperando que elas ditem limites em nome de seu conforto e sua segurança. Há zonas demais na existência alheia que permanecerão nos subterrâneos, na clandestinidade. Mais vale escutar a si e ao outro, perceber anseios reais, respeitar diferenças e caminhar, às vezes disposta a saltar do trampolim com a destreza da amante que ainda aprende a nadar.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.