Bemdito

Triste como um tango

Da economia ao velório de Maradona, os desacertos questionáveis do presidente argentino Alberto Fernández
POR Simone Mayara
Foto: Casa Rosada

Recentemente, os ex-presidentes brasileiros FHC e Lula assinaram nota em apoio às medidas tomadas pelo atual presidente argentino, Alberto Fernández, quanto ao Mercado Comum do Sul (Mercosul). O centro do documento e da questão, que se tornou política, é a Tarifa Externa Comum (TEC), alíquota de imposto de importação adotada pelos países do Mercosul que varia de acordo com o produto.

Essa é uma das características do bloco criado há 30 anos com o objetivo de fortalecer a região frente ao resto do mundo. A decisão é interessante estrategicamente para ganhar voz nos fóruns de discussão e também para atrair investimentos em um mundo globalizado – o modelo dos blocos econômicos foi ainda mais valorizado no início dos anos 90.

“Concordarmos com a posição do presidente da Argentina, Alberto Fernández, de que este não é o momento para reduções tarifárias unilaterais por parte do Mercosul, sem nenhum benefício em favor das exportações do bloco. Concordamos também que é necessário manter a integridade do bloco, para que todos os seus membros desenvolvam plenamente suas capacidades industriais e tecnológicas e participem de modo dinâmico e criativo na economia mundial contemporânea”, afirma a nota.

É muito mais simples agradar na política quando se utiliza a primeira pessoa no plural. O efeito costuma ser a crença de que o assunto ali tratado realmente é pelo bem de todos e afasta o pensamento crítico. A situação piora quando estamos falando de um imbróglio econômico. A economia é mais difícil e complicada de  explicar e não comporta, quando tratada de forma séria, o uso de gatilhos afetivos. 

Com a divulgação da nota e o posterior cancelamento da reunião do bloco, a proposta bastante técnica e econômica ganhou roupagem mais política. E uma explicação sobre os malefícios da posição argentina pode afundar sob palavras-chave como: integração, união e fraternidade, que, infelizmente, quando não muito bem acompanhadas, dizem muito pouco.

O argumento utilizado para a manutenção da taxa  é o protecionismo à indústria nacional. Segundo esse argumento, temos de proteger a nossa indústria dos produtos que venham do exterior mais baratos, causando desemprego e atraso por aqui. A parte cômica é que essa explicação simplista não fala do aumento artificial de valores, sobretudo para os mais pobres, sem contar que isso impede  o acesso aos bens importados e de qualidade. 

Típico caso em que as palavras bonitas e a ligação óbvia e mais direta parecem favorecer os mais pobres, mas só garantem que os industriais que recebem esse tipo de proteção continuem usufruindo da reserva de mercado. Sempre uso o exemplo do iPhone para explicar isso sem tanto economês. O iPhone vendido no Brasil é um dos mais caros do mundo. Isso acontece porque os tributos são postos sobre o produto para proteger a indústria nacional. 

Nesse caso, os tributos têm algum caráter impeditivo da compra e alguns são utilizados para estimular a tecnologia do país. A justificativa parece boa, né? Mas, por isso, temos um produto que passa a ser acessível apenas às classes mais altas, que, tendo o poder de compra, não abrirão mão de obter o melhor produto. E as classes mais baixas terão de adquirir produtos de qualidade inferior e não terão acesso ao melhor – ou pelo menos não poderão de fato escolher entre o nacional e o importado.

Ficou claro? A justificativa para o protecionismo é quase afetiva: proteger nossos mercado e nosso povo. O resultado não é nada bonito: classes altas tendo acesso ao melhor, reserva de mercado para o industrial brasileiro e impedimento das classes mais baixas de chegar às melhores tecnologias (esse último resultado é ainda mais sério quanto se vive na Era da Automação). 

Espero que esse exemplo tenha sido capaz de explicar o porquê de os discursos protecionistas serem ruins para a economia e um atraso imenso na história do Brasil e também do Mercosul.  

Além dos malefícios já identificados, uma crítica  à taxa única é a pasteurização de coisas tão diferentes: os setores econômicos fortes variam entre os países bem, como a sua situação econômica. Isso inclusive já deu origem a várias exceções às taxas, o que fez o embaixador responsável pela negociação estranhar a negativa da Argentina, tendo em vista que, na prática, a taxa já tem sido quase uma “peneira”.

Além do fator econômico, a questão escalou seu caráter político com o cancelamento da próxima reunião, que aconteceria em 15 de junho, e com o desconforto gerado ao governo brasileiro pela discordância interna feita por nomes de peso.

Sobre isso, é interessante ver mais de perto o apoio a Alberto Fernandéz pelos ex-presidentes brasileiros. Durante a sua campanha, o agora presidente declarou publicamente Lula Livre, então não é de estranhar a troca de apoios por parte de Luiz Inácio. Mas, mais uma vez, tecnicamente, apoiar um presidente que toma decisões econômicas tão ruins internamente não faz sentido. A esse ponto, porém, o apoio já deixou de ser técnico.

A eleição de Fernandéz foi festejada sobretudo pela esquerda, que via nesse acontecimento uma possível volta da onda vermelha, ou rosa, do início dos anos 2000. E a essa empolgação reputo o apoio ou o menosprezo aos erros do presidente desde que assumiu. 

As práticas internas de controle de preços e o intervencionismo, determinando inclusive períodos em que será proibido exportar certos bens, e a criação do imposto sobre grandes fortunas, não são uma inovação do peronista. Já foram feitas várias vezes e em todas causaram escassez e aumento da pobreza.

Como uma novela repetida, a taxação de grandes fortunas não atingiu os valores esperados, mas causou o que se imaginava: a fuga de gente e capital. Além disso, houve controle de preços e de produção, quando o Estado determina que se deve produzir mais leite e não iogurte, por exemplo, intervenções que fizeram empresas grandes e pequenas deixarem o país. Não estamos falando do grande capital imperialista, muito citado pelo presidente, mas de empresas e cidadãos argentinos que têm optado por outros países para viver e produzir. O Uruguai tem se beneficiado muito disso.

O resultado é uma crise econômica que já se desenhava antes mesmo do início da pandemia, com queda de poder de compra e aumento do número de argentinos em situação de penúria. Além disso, as medidas duras de fechamento e controle de circulação de pessoas não foram suficientes para minimizar o caos. A Argentina foi o 5º país do mundo a alcançar um milhão de infectados pelo coronavírus – a população do país em 2020 era de 44,94 milhões de pessoas, em outubro do ano passado.

Quanto à vacinação, o país está sendo considerado lento, e os órgãos oficiais indicam a escassez de vacinas como culpada, ainda que recentemente o presidente tenha tido que se explicar quanto aos obstáculos para a contratação das vacinas da Pfizer. Ainda sobre as vacinas, há investigações sobre fura-filas ligados ao governo, se não com o aval, com a displicência do Ministério da Saúde, o que levou à renúncia do ministro.

Outra situação curiosa é que mesmo tendo sido muito vocal desde o início sobre a importância de evitar contato, houve a liberação da sede do governo para o velório do ídolo argentino Maradona, que reuniu cerca de um milhão de pessoas. Para o rol de desacertos, está a gafe do presidente em reunião com o Primeiro Ministro espanhol. Ao tentar ressaltar uma espécie de origem europeia pura dos portenhos – o que por si já é falseamento histórico – falou que os brasileiros vêm da selva. Não mentiu, já que a referência indígena em nossa matriz é importantíssima, mas adicionou, ao seu rol de desacertos rapidamente esquecidos e justificados, este elemento: um discurso racista.

Da economia ao velório de Maradona, voltemos à questão central do texto, que é: um presidente que não cuida da própria casa está sendo apoiado por ex-mandatários do Brasil – que também não está lá essas coisas -, em decisões econômicas que terão efeitos para ambos em uma matéria que não é considerada de efeito tão drástico (a mais alta tarifa, que atinge produtos eletrônicos e automóveis, entre outros, cairia de 35% para 28%) e tem seus atos de irresponsabilidade – ou má gestão, como queira – preteridos em razão do discurso.

A tal nota, portanto, confrontada com os fatos e com o experimentado, mostra-se uma peça política que exalta a forma e ignora o mérito. Favorece discursos bonitos para o que se vê, mas terá como resultado o que não se vê de imediato: a perda de competitividade do Brasil no mercado, que só atrapalha a retomada econômica. A paixão pela imagem e o apoio a uma ideologia, no fim, nos deixará tristes, como num bom tango.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.