Bemdito

Os bandidos tímidos, a violência e as câmeras

Uma análise sobre o programa que instalou três mil câmeras corporais para gravar a ação policial em SP e pode ter levado à redução da letalidade
POR Alex Mourão

Os filmes de Quentin Tarantino são marcados por imagens de uma crueza bela, uma violência quase poética, composta por música e prosa. A violência se firma na tela, se mostra sem qualquer timidez. No estilo Tarantino de fazer cinema, os bandidos, e até mesmo os mocinhos, não são tímidos, pelo contrário, são despudorados.

Na vida real, parece que as coisas ficam diferentes. Ficaram todos tímidos da noite para o dia. Ao que parece, essa timidez tem uma causa: a instalação de câmeras nos uniformes policiais. Ou uma entre outras causas. Explico.

Ainda não é uma realidade em todas as forças policiais no país, mas está começando de forma bem interessante em São Paulo. No mês de junho, três mil câmeras corporais que gravam de forma ininterrupta foram instaladas nos uniformes de policiais de 18 unidades militares em São Paulo. Já no primeiro mês, foi registrada uma significativa queda da letalidade policial.

Se pensarmos que, de janeiro a maio de 2021, a média de mortes em ações policiais era em torno de 50 por mês e em junho caiu para 22 (em toda a PM do estado), temos um interessante dado a ser estudado. Mais interessante ainda, nas unidades policiais, onde as câmeras foram implantadas, não ocorreu morte em confrontos. Isso mesmo. Caiu na média geral da corporação e zerou nos batalhões com câmeras.

Os dados ficam mais curiosos ainda quando olhamos, por exemplo, o caso da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA). O órgão é uma força chamada de elite da Polícia Militar de São Paulo, mas marcada pelos números de letalidade em suas ações.

Para se ter um exemplo, entre 2018 (51 óbitos) e 2019 (101 óbitos), o número de pessoas mortas em ações policiais, apenas da ROTA, cresceu quase 100%. No mesmo período, segundo dados da própria PM de São Paulo, tomando como base toda a corporação, a letalidade aumentou “apenas” 11,5%. Com a câmera corporal, em junho de 2021 o número de mortes em ações da ROTA foi zero. Sim, isso mesmo, zero.

O fato da ação ser filmada não reduziu o número de abordagens ou prisões, portanto, os policiais não estão atuando menos. Ainda é prematuro afirmar, mas há um indicativo de que estejam atuando melhor.

É bem verdade que a Polícia Militar de São Paulo já vem desde o segundo semestre de 2020 com uma forte campanha de redução da letalidade, mas também é verdade que a adoção das câmeras corporais tem se revelado um importante ponto que força a queda de mortes nas abordagens.

Outra vantagem das câmeras é que permite a análise constante dos protocolos policiais de abordagem e atuação, de forma a melhorar a segurança da população e do próprio policial. Nesse ponto, a polícia tem uma grande oportunidade de rever técnicas e promover um melhoramento contínuo, dentro dos padrões democráticos de sua atuação.  

A novidade aqui nas câmeras é que elas gravam tudo, sem qualquer interrupção, não precisam de qualquer acionamento por parte do policial, e vêm com um sistema de GPS que permite localizar o policial e ação em tempo real. É um sistema transparente que pode produzir provas que irão eliminar de qualquer suspeita os bons policiais e, ao mesmo tempo, coibir a ação dos maus policiais.

Ainda é muito cedo para atribuir a queda de letalidade ao simples uso da câmera, mas não é cedo para já indicar que a transparência, principalmente em instituições policiais, pode dar bons resultados.

A fiscalização do trabalho policial, feita pela sociedade e pela própria polícia, não desmerece o trabalho dos profissionais sérios, pelo contrário, é valorizado. Vamos deixar a violência para a ficção e exigir que a polícia atue dentro dos protocolos e do estado democrático de direito. 

E aqui, por fim, ficam várias perguntas: Amarildo teria desaparecido se a PM do Rio usasse esse sistema na época? Tantos teriam morrido no Carandiru, no Jacarezinho (escrevemos aqui no Bemdito sobre o tema), em Paraisópolis e em tantas outras ações policiais?

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.