Bemdito

Morador expulso de casa descreve momento de invasão à comunidade

Vítima estava entre as 50 famílias que foram desalojadas por criminosos, em Caucaia, após racha no Comando Vermelho
POR Thiago Paiva
Foto: Divulgação/SSPDS

O episódio de expulsão das 50 famílias que viviam na comunidade Uga-uga, no bairro Tabapuazinho, na cidade de Caucaia, ainda assombra e interrompe o sono daqueles que tiveram as casas invadidas por criminosos enquanto dormiam.

A possibilidade de que a cena se repita é o maior temor entre os moradores que permaneceram ou retornaram ao assentamento precário. É o que conta uma das vítimas, que relatou à coluna o que viu no dia em que foi acordada ao som de tiros e chutes no portão.

“Eu tremia. Foi desesperador. Nunca pensei passar por isso. Ser expulsa da minha própria casa? Eu não sabia o que fazer. Queria sair, mas não podia abrir a porta. Eles mandaram todos saírem, que era pra deixar a rua limpa”, recorda a testemunha, de identidade preservada.

A invasão foi parte de uma disputa pelo controle daquele território para o tráfico de drogas, conflito travado entre membros do Comando Vermelho (CV) e seus dissidentes, que se definem como Massa ou Neutros. No último dia 13 de julho, por volta das 5h30min, o conflito extrapolou os limites internos da facção e atravessou as vidas dos moradores da Uga-uga.

O silêncio do raiar do dia foi interrompido e os moradores, acordados em sobressalto. Pés nas portas, armas em punho, tiros para o alto e muita violência. Uma a uma, as casas foram invadidas por faccionados que procuravam pelos dissidentes que estariam envolvidos nos assassinatos de dois membros da facção, dias antes da invasão.

“Parecia uma eternidade. Eles gritavam e pichavam as paredes das casas de CV. Quando a polícia chegou, eles fugiram. A comunidade fica perto do mangue, e os caras da Massa tinham fugido pra lá. Quando a polícia saiu, eles subiram, cobriram as pichações de branco e ficaram com os celulares na rua, gravando e desafiando o CV a voltar. E as famílias com crianças no meio disso tudo”, lembra e lamenta.

A descrição do cenário nos minutos seguintes à invasão é desoladora. Feito retirantes, muitos abandonaram as casas às pressas. Vendiam parte dos pertences, como geladeiras, fogões e TVs para conseguirem pagar o frete, abandonado casebres e histórias.

“Era carrinho de mão indo e voltando. Eu nunca tinha visto aquilo na vida. Só ficou quem não tinha para onde ir, apostaram na sorte. A maioria dos moradores é reciclador. Lutaram a vida toda pra construir um barraco, com todo esforço, e teve que ir embora por conta de uma guerra sem sentido”, se emociona. “Em plena pandemia, eu ter que me preocupar com facção, com medo de morrer pelo simples fato de estar na minha casa?”, desabafa.

“É seguro voltar”

Após a invasão, a Polícia Militar ocupou a entrada da comunidade com uma base móvel e permanece no local, realizando um trabalho de convencimento para que os moradores retornem. Titular da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), o delegado federal Sandro Caron assegurou, em entrevista ao jornal O Globo, no último dia 8, que todos podem retornar às suas residências.

“Posso garantir: é seguro voltar para casa. A Polícia reforçou a ostensividade, estará lá 24 horas. Nossa presença garante que, aqueles que queiram retornar, podem voltar. Muitos já voltaram. A gente está permanentemente lá e vai ficar enquanto for preciso. Essa situação de ameaça aos moradores, sempre que for necessário, o Estado vai ocupar para que as pessoas fiquem em suas casas”, reforça.

A situação leva os moradores a um dilema: retornar e conviver com as ameaças constantes ou ir embora e deixar tudo para trás, em nome da segurança. Ocorre que, para a grande maioria, não há para onde ir. Todos são vítimas desse fenômeno chamado de refugiados urbanos, aqueles que são deslocados de suas residências, de maneira forçada e, neste caso, também de forma violenta.

Conflito motivou chacina

O temor é justificado, inclusive, pela confirmação de que a chacina praticada no distrito de Boqueirão das Araras, no mesmo município, no último dia 31 de agosto, teve como motivação o conflito na facção. Cinco homens foram mortos. Eles seriam dissidentes do CV. Seis suspeitos foram presos. Eles confessaram suas participações no ataque e confirmaram integrar o Comando Vermelho.

“É verdade que a PM está aqui. E a gente se sente seguro. Mas tenho medo, muito medo do dia que eles forem embora. Os caras podem voltar de novo. Na verdade, eles estão aqui. Eu vejo os homens que tentaram invadir minha casa todos os dias. Passam na rua como se nada tivesse acontecido. Aproveitam a segurança da polícia pra circular por aqui. E quem é que vai ter coragem de denunciar? Ninguém fala, ninguém viu”, conclui.

Thiago Paiva

Jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário, é assessor de imprensa e foi repórter especial no Núcleo de Jornalismo Investigativo do jornal O Povo.