Bemdito

A rua como casa

O lugar sagrado para o batismo em momentos de morte, sepultamento e redenção
POR Jamieson Simões

O lugar sagrado para o batismo em momentos de morte, sepultamento e redenção

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

A voz na minha cabeça dizia que não havia mais lugar para mim. Era como se a cidade encolhesse e não me coubesse mais. As plantas não floriam como antes e as minhocas fugiram da composteira, nem o mar que eu adorava olhar da janela do quarto me encantava mais. Estava morrendo por dentro. Foi nesse momento que me deu o estalo mais louco ou lúcido: largue tudo e vá pra rua. A possibilidade de ser invisível, de sumir, de não-ser eu mesmo e ser-eu mesmo sempre me seduziu.

Saí de casa com a roupa do corpo, sem documentos. Escondi a chave na janela do corredor, decidido a só entrar ali novamente em 30 dias. Parti com a roupa do corpo, sem barba, com cabelo raspado, maquiagem improvisada com graxa de sapato e urucum, e ainda uma lâmina para alguma emergência no cós da bermuda, com uma discreta oração para que não fosse necessário usá-la.

Caminhei rumo ao centro da cidade, onde encontrar comida me parecia mais viável. Atravesso a Lagoa do coração, o Areal, o Beco da Galinha e caminho livre na Avenida Dom Luís. Meus olhos tiram onda do espanto e do medo das pessoas. Bebo aquela ojeriza com algum prazer. Os seguranças olham tentando intimidar, eu baixo a cabeça fingindo submissão. Dissimulado e livre.

Meu disfarce não durou muito tempo. Mesmo evitando os grupos já estabelecidos de pessoas em situação de rua, dormindo em árvores e vagando sozinho, vulnerável, fui denunciado pelos olhos. Estava na rua São Paulo, observando quem jogava alguma comida no lixo para retirar rapidamente. Um grupo de três homens jovens se aproxima, também em situação de rua. Me perguntaram de onde eu vinha, qual era a minha letra, qual o meu território… O tempo podia ter fechado facilmente. Mas um me olhou diretamente nos olhos.

– Eu te conheço! Conheço teus olhos.

Gelei a espinha. Pensei nos tempos do sistema. Vai que ficou uma mágoa mal resolvida…Tá na casa do sem jeito! Pensei e me preparei para o pior. Eram três homens jovens. Com sorte, sairia ferido do conflito. Se fosse meu dia, minha hora, estava ali diante de mim. Coloquei as costas na parede e montei a estratégia. Bateria fortemente no que estava mais atrás, aparentemente mais covarde (geralmente é o que fica com o cossoco e desfere as estocadas no rim ou no fígado) e não poderia correr. Teria que lutar até o fim ouaté a polícia chegar.

– Irmão! O que é que você tá fazendo na rua? Eu te conheço! Cadê a sua barba?

Fui levado para a Praça do Ferreira, deram-me banho. Apareceu sabão de coco, lavaram a minha camisa. O pano ensaboado tirava da minha pele a tisna da graxa, o urucum, a fuligem. O banho é simbólico. Batismo. Renascimento. Nova vida.

Foi na rua que os meus cacos fizeram sentido. Foram as não-pessoas que me devolveram dignidade e sentido. Foi quem tinha muito pouco que me ofereceu cuidado e carinho. As lágrimas na volta pra casa também foram um tipo de batismo. A rua é sacramento. Não passei os 30 dias planejados. Três dias foram suficientes para morte-sepultamento-redenção. Na verdade, acho que nunca voltei completamente para casa.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.