Bemdito

De braços abertos com Ahuva Sommerfeld

Quando a morte, encarada com ironia, bom humor e respeito, ensina sobre pulsão de vida
POR Paula Brandão
Foto: Adrian Campean/A+A Produktion

Passar por grandes catástrofes deveria nos fazer pensar a razão da vida. A (im)potência é iluminação e cura para uns, perdição para outros. Li, certa vez, que um determinado psicanalista não atendia os marcados pela guerra, pois essas dores seriam tão profundas, quanto intratáveis. A pandemia que enfrentamos, já no segundo ano, fez-nos perder a perspectiva de futuro, recorrer ao imediato e conviver com o horror à nossa volta, aprendendo a alijar-nos das coisas irrelevantes.

Em Autobiografia de um espantalho, Boris Cyrulnik diz que cada cultura fornece meios para as pessoas expressarem as suas feridas, o que remaneja a dor para um plano da resiliência ou do impedimento. O sofrimento é o mesmo para todos os traumatizados, mas há uma forma peculiar de expressão desse tormento. Por exemplo, na cultura ruandesa, o indivíduo deve mascarar seu sofrimento diante das pessoas, pois é indigno andar a queixar-se das coisas ou a chorar publicamente. À noite – sempre ela -, o horror pode ser libertado sem julgamento. No caso da dificuldade de expressar o acontecimento, pode-se criar uma história para ser escutada pelo grupo, com respeito. Padeço dessa necessidade, de liberar o terror em que vivemos, contando uma breve narrativa. 

Numa noite bem monótona, em dias em que estamos a sós, mesmo que não sozinhas, tive o meu encontro com a senhora Stern. E ela me ensinou que se tem algo que nós devemos fazer é as pazes com a solidão. A sua energia me contaminou de imediato. Única da sua família a sobreviver ao holocausto, aos 90 anos, em Berlim, a sua presença fez alvoroço em minha noite! 

Frau Stern vive com uma neta que a cerca com seus jovens amigos. Não tem nada que me chame mais atenção do que ageless! São aquelas criaturas que ninguém sabe quantos anos têm ao certo, e não é possível demarcar, porque estão num território de fronteiras cada vez mais fluidas. Trata-se de um filme intitulado Ms. Stern, muito bem humorado e irônico.

Ao entrar num bar, logo de início, ela acende o cigarro, pede uma bebida e diz à bartender que quer morrer. Sim, uma das personagens do filme, certamente, é a morte, essa estranha que tem marcado presença nos nossos dias, de modo mais contundente, no último ano. Mas não desista do filme por aqui, sobretudo por ser a prova cabal de que, ao vivermos em condições de terror, aprendemos a lidar com a vida de outro modo.   

Nas mesuras de seu cotidiano e dos afetos que a cercam, vez por outra ela solta as tiradas: “dessa vida deve-se fugir enquanto pode!” Por mais que ela invista no ceticismo, insistentemente, a vida lhe acolhe, seja na presença cordial de seu cabeleireiro que vai, semanalmente, à sua casa, corta seu cabelo, e depois os dois sentam para conversar, fumando um baseado; ou pela neta carinhosa, que a leva para as farras com os seus amigos. E você sente logo que sentaria com essa mulher, em volta de um balcão do bar, e ficaria por horas agradecendo a sua companhia.

Stern não consegue atingir o seu objetivo, porque não se chama a morte sorrindo para a vida. Recorri a Caio Fernando Abreu, em Cartas, ao revelar que estar perto da morte faz a gente achar a vida tão bonita, que se escolhe não morrer, ainda que essa decisão seja meio tortuosa, não-racional. “Vou falar o óbvio de Eros e Tânatos: o impulso para amar, para encontrar, conhecer e mergulhar no outro é o que nos traz para perto da vida. E é por isso que, quando se está de braços abertos, se está dando as costas para a morte. Ou deixando, calmamente, que ela venha a seu tempo – porque fatalmente virá.” O escritor diz que chega uma hora em que você tem que escolher a vida, mesmo não sabendo bem o que isso significa.

Por mais que Stern fale em morte, ela também é pulsão de vida e alegria no trânsito da cidade, irradia o segredo das miudezas, está aberta para o encontro com o outro, faz brotar afeto e generosidade. Acredito que Caio Fernando e Ahuva Sommerfeld, protagonista do longa, seriam grandes amigos. Ambos miravam a morte com respeito e certo bom humor. Esse longa foi a estreia dela como atriz. Por seu primeiro e último filme, foi indicada a vários prêmios importantes. Logo após o fim das filmagens, a atriz faleceu na dita vida real. Sim, Caio Fernando, a morte sempre chega!

Aprendemos, ultimamente, que precisamos de muito pouco para viver. E já pressentimos que será difícil emendar os nossos pedaços, mas que, como qualquer sobrevivente, encararemos as situações de frente, mirando um problema de cada vez, deixando-os serenar, até quando for preciso. No tempo certo, criaremos os meios de escoar a nossa dor e oferecer abrigo caloroso ao que já fez moradia. Viver é, cada vez mais, um atrevimento! Dedico esse texto, com todo o amor, à Ahuva Sommerfeld! Pela ousadia de recriar-se, mesmo em seu último ato de vida!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).