Bemdito

Autofagia do cancelamento

Na corrente cega do linchamento virtual, acabamos devorando quem está ao nosso lado
POR Jáder Santana
Ilustração: Lucas Jennis (1625)

A reprodução de lugares-comuns em argumentos e ações é um problema que foge de nosso controle e acaba gerando efeitos que nos atingem colateralmente. Reflexo de uma geração desacostumada a pensar criticamente, o lugar-comum aparece como estratégia acessível de argumentação: sem exigir qualquer grau de análise, é a resposta padrão, o raciocínio pronto, esperando para ser requentado e colocado sobre a mesa em ocasiões infinitas. 

Mas, justamente por carecer de critérios, é falível e perigoso. Quando disparado ao léu, – reação automática, mecânica, instintiva -, o lugar-comum, amparado, fortalecido e amplificado por uma comunidade virtual alicerçada justamente sobre clichês, pode envenenar quem está ao nosso lado. As redes sociais são, por excelência, o lugar das ideias prontas e dos envenenamentos. 

No último domingo, 6, uma cafeteria do Benfica, bairro de tradição universitária de Fortaleza, foi acusada de conduta abusiva com uma funcionária. Sem citar o estabelecimento, a ex-funcionária foi ao Twitter dizer que, um mês depois de pedir demissão, ainda sofre de ansiedade, que tem medo de procurar outro emprego e se sente insegura e incapaz de trabalhar para alguém outra vez. Não posso duvidar da sinceridade de seu relato, estamos mais que habituados a acompanhar, dia após dia, denúncias de irregularidades em relações trabalhistas.

Mas, antes de ceder ao instinto de apertar o botão do lugar-comum do cancelamento, cabe refletir sobre o quadro que foi desenhado a partir do discurso da ex-funcionária. Primeiro: apesar de elencar todos os efeitos negativos e traumas que o emprego havia lhe causado, a ex-funcionária não é clara ao explicitar quais condutas abusivas seriam essas. Ela cita que o irmão foi demitido do mesmo lugar por WhatsApp, que outros amigos foram demitidos sem justificativa e que ouviu os donos argumentarem que os funcionários estavam ganhando mais que os proprietários. E só.

Acompanhei o lançamento dessa cafeteria em março do ano passado, mês em que foram aplicadas as primeiras medidas de lockdown e distanciamento social no Ceará. O estabelecimento, inaugurado poucos dias antes, precisou fechar suas portas. Nas redes sociais, lançaram campanhas de apoio, venderam vouchers para consumo futuro. Se movimentaram para tentar garantir vida ao negócio. Provavelmente, atrasaram fornecedores e funcionários. Provavelmente, tiveram que demitir muitos deles. Sem justificativa? Com justificativa. Ela está aí.

Ela está aí porque a cafeteria não integra uma grande rede. Não é um Starbucks, um Café Santa Clara, um Cacau Show, um Grão Espresso. É uma iniciativa independente, um café de bairro, sonhado, criado e mantido por duas pessoas que poderiam ser eu e você. Que, talvez, poderiam ser a funcionária demitida. Ex-universitários na casa dos 30 anos que, com algum dinheiro na poupança e muita vontade, criaram um negócio fadado a existir no Brasil de Bolsonaro e do Covid-19. Se deixarmos a sede pelo cancelamento em suspensão por alguns instantes, vamos ver que não é justo tratar um pequeno negócio como trataríamos a Amazon de Jeff Bezos – a mesma Amazon que provavelmente tem lugar cativo no histórico de mais acessados de seu navegador. 

Mais que isso: é tão difícil assim acreditar que, em plena crise, funcionários estejam ganhando mais que os proprietários? Não preciso ir muito longe. Hoje posso dizer que os prestadores de serviço do Bemdito ganham, sim, mais que os donos do portal. O Bemdito é filho do Brasil de 2021, um Brasil injusto, indecente e imoral. Seria difícil acreditar nisso se fizéssemos parte de um conglomerado de mídia, mas, independentes como somos, como a cafeteria é, não há outra verdade. 

Então, afasto qualquer culpa da ex-funcionária em seu desabafo no Twitter, que se pode ser acusada de alguma coisa é de estar algo alienada em relação ao que estamos todos vivendo hoje. Seu tuíte também é sintoma óbvio de uma geração emocionalmente frágil que, nas e pelas redes sociais, desaprendeu a lidar com frustrações e contratempos. Tudo vira trauma e insegurança. Tudo é gatilho.

Também não culpo os donos da cafeteria, pessoas de coragem e coração, que tentando sobreviver a essa crise sem precedentes podem ter cometido deslizes que geraram desconfortos em sua equipe. Mas observo com indignação a revolta fajuta dos canceladores que, do alto de sua arrogância, propõem-se a linchar o estabelecimento, movidos por uma escassez material de argumentos que constrangeria qualquer acusador. 

Espero que a ex-funcionária supere as suas inseguranças e consiga um novo emprego, seu direito fundamental assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Espero que os linchadores provem de seu próprio veneno. Espero que a cafeteria consiga honrar suas dívidas com funcionários e fornecedores, que sobreviva à crise e que continue sendo um lugar de encontros e celebração. Espero que percebam, funcionária, linchadores e proprietários, que estamos todos do mesmo lado.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.