Bemdito

Veja Multiuso ou do que faz nossa casa nossa

Sobre a mistura dos cheiros, tempos e movimentos comuns a todo lar
POR Alice Dote

Sobre a mistura dos cheiros, tempos e movimentos comuns a todo lar

Alice Dote
alicedote@gmail.com

Tu nem sabe. Depois de pouco mais de uma semana longe de casa e pouco mais de três longe de ti, foi o cheiro de um Veja Multiuso que me levou a vocês. Foi instantâneo: espirrei o líquido transparente no vidro embaçado do espelho e subiu o cheiro da branca bancada da nossa cozinha. Acertou-me e invadiu-me desprevenida. Dentre tantos, eu nem desconfiava que logo esse cheiro banal, um cheiro que nem cheiroso é, poderia ser especial, ou sequer distinguível, para mim.

Aquele cheiro pós-louça-lavada, aliás, aquele cheiro pós-louça-lavada da nossa casa.

Tu sabe. Desde que começamos a dividir a tarefa de manter limpa uma cozinha, me afeiçoei ao Veja Multiuso. Não qualquer multiuso, pois o cremoso Cif perdura há meses no armário de produtos de limpeza sem que se dê cabo dele, mas o Veja. Não foi preciso muito tempo para descobrirmos que cada um tem uma maneira peculiar de lavar louça (e mesmo de acomodá-la no escorredor, de repousar o pano de prato, de usar o rodinho de pia). Eu poderia descrever cada fração desses hábitos irrefletidos que, a depender do dia, despertam involuntários sorrisos enternecidos ou ranço.

Continuo a defender a lógica, que tento te explicar há dois anos, de deixar acumular a louça de todas as refeições e lavar tudo de uma vez só. Aqui, te surpreenderiam minhas fragmentadas incursões à pia ao longo do dia. Encaminhar a louça para o escorredor se tornou quase uma obsessão: sinto que tenho que me apressar, antes mesmo da comida se acomodar no estômago, para evitar que minha mãe trate dos pratos e talheres à minha frente. Ela, então, se põe ao meu lado e os seca e os guarda. Por preguiça ou por estratégia — prefiro pensar que é mais uma dessas inventadas lógicas domésticas —, sempre deixamos nossa louça enxugar-se sozinha, percebe?

A cada dia, me habituo um pouco mais aos diferentes tempos e movimentos das coisas de uma casa e, simultaneamente, não deixo de sentir falta do que faz nossas as coisas. É como se usar o moedor de pimenta, as facas ou a Air Fryer de uma cozinha nos desse a perceber a existência dos utensílios, eletrodomésticos, gavetas e portas da nossa. Percebe que eles vão nos configurando mínimos movimentos das mãos? Penso, aliás, no giro quase automático que fazemos para pegar o pote de sal enquanto cozinhamos. A casa e as coisas nos requerem o corpo todo.

Aqui se usa um detergente Limpol amarelo e uma esponja também amarela, aquela mais comum. É engraçado que, só assim, noto que, sem que tenhamos feito uma espécie de pacto em algum momento, costumamos usar Ypê neutro, sem cor e sem cheiro, e esponjas roxas. Até pensei em pegar um pacote delas no supermercado, mas agora já me acostumei com as mais molengas. A bancada em pedra escura parece não pedir aquele esfregar contínuo de Veja Multiuso, indispensável em nossa pedra branca, e isso só percebi quando abri o armário para procurar um Vidrex. Há dias me via embaçada no espelho do quarto e, nessa preguiçosa segunda, desfazer essa névoa no vidro me pareceu inadiável — como o parecem todas essas coisas que a gente faz pra adiar outras. Tu sabe.

Pois foi imediato mesmo. O cheiro químico do produto de limpeza que não sai do canto esquerdo da pia, sempre entre o escorredor e a cuba, fez aparecer, num piscar dos olhos frente ao reflexo, nossa cozinha. Essa cozinha alva, clara e quente, em que tudo parece acomodar-se quase perfeitamente para que os movimentos do café-da-manhã sejam coordenados. Ou que a saudade faz ser assim.

Veja… Teu olfato assim em repouso passa incólume a esse cheiro. Mas a embalagem azul ainda está no mesmo lugar, não está? Tenta reparar numa das texturas mais sem graça do cotidiano doméstico: o líquido transparente encharcando o Perfex que desliza junto à mão. Sobram breves vestígios de espuma nos dedos (dependendo do tamanho da lida com a louça, enrugados pelo contato prolongado com a água). O cheiro, agora, não te chega, como através dele eu cheguei por aí. Do que emana dos corpos e das coisas, o que será que primeiro te anunciará a recuperação? Será o odor das cachorras também confinadas ou da lixeira cheia de cascas de banana (tenho certeza que tu as tem comido, como sempre, com granola e mel)? O cheiro do refogado de alho e cebola, da tua comida temperada com as especiarias trazidas do Pará? Do teu próprio corpo? Do Veja Multiuso, da água sanitária, do desinfetante verde-natureza? Desconfio que qualquer cheiro de casa será um alento — como é recordá-los ao fazer um rápido e impreciso inventário do que faz nossa casa nossa. Me conta dos cheiros também.

Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.

Nota da autora: A primeira versão desse texto foi produzida durante o curso Como criar histórias, ministrado por Socorro Acioli, e lida para a turma na noite de quarta-feira dessa mesma semana.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.