Bemdito

Morte morrida e morte matada

Como separar os “passamentos” durante a pandemia que castiga sertões e metrópoles
POR Xico Sá
Foto: Intervenção sobre cena do filme "Deus e o diabo na terra do sol"

Como separar os “passamentos” durante a pandemia que castiga sertões e metrópoles

Xico Sá
bemditojor@gmail.com

Foi morte morrida ou morte matada?

Trata-se de uma pergunta clássica dos sertões totais,  dos Inhamuns às beiradas do Pajeú. Uma pergunta tão antiga quanto a própria Velha da Foice. 

Foi em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, porém, que estas classificações reverberaram como um aboio quando faz eco na Chapada do Araripe, bem ali entre o Exu e o Crato – parece que escuto o vaqueiro a dizer as dores do mundo.

Toquemos o enterro na versão cabralina:

“E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.”

Quem me relembrou do dilema, morte morrida ou morte matada, foi o jornalista pernambucano André Galindo (TV Globo), em um post nas redes sociais. Ele se referia, óbvio, aos brasileiros que tombaram na pandemia, que desgraça. 

Diante do desmantelo e da omissão do Infeliz-das-costas-ocas, a cada óbito podemos questionar: morte matada ou morte morrida? 

Pode ser considerada uma morte morrida (natural), uma morte por falta de UTI, oxigênio ou material para intubar uma criatura? 

E se a gente ficar sabendo, caro Galindo, que o governo simplesmente se recusou a comprar mais vacinas ainda lá por setembro do ano passado?

Morte matada com requintes de bagaceira e mosca no olho. Daí por diante, só um conto do genial cearense Pedro Salgueiro, lá de Tamboril, autor de O peso do morto (1995), abarcaria este universo. Ninguém escreve melhor sobre o assunto. 

O Brasil precisa conhecer a escrita de Pedro Salgueiro. Falo do Brasil todo. Só um homem que sabe dos Inhamuns é capaz de escrever sobre morte matada e morte morrida da forma universal que ele escreve. Não venham com esse papinho de regionalismo que a gente late como os cães de Moreira Campos – para seguir falando dos russos da literatura do Nordeste.

Não dá pra separar, a essa altura da carnificina, os mortos matados e os mortos morridos. Talvez somente o Tribunal de Haia dê essa resposta um dia à humanidade. Espero que seja o mais rápido possível.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros. Está no Twitter.

Xico Sá

Jornalista e escritor.