Bemdito

O céu de marte incendeia e dança

Uma crônica sobre a chegada do robô Perseverance ao seu destino e sobre as danças do céu de Marte
POR Juliana Diniz
Foto: NASA/JPL-Caltech/ASU

Uma crônica sobre a chegada de Perseverance ao seu destino e sobre as danças do céu de Marte

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Foi com uma certa indiferença que tomei conhecimento da aterrissagem do robô Perseverance em Marte. Descobri que ele viajou por 480 milhões de quilômetros, que partiu da terra em julho de 2020, levando meses até chegar ao seu destino. Uma distância de tamanha magnitude que já não quer dizer tanta coisa para quem conta os deslocamentos em ninharias de geografia e cronologia. Marte é muito longe, por isso Marte é um lugar que não existe.

O robozinho – vou deixá-lo no diminutivo na intenção de trazê-lo para perto – caiu do céu em um grande paraquedas que levava uma mensagem de autoajuda cifrada para os marcianos. “Dare mighty things”. Uma mensagem sobre ousar coisas poderosas, coisas como construir um robô bisbilhoteiro e ejetá-lo para um lugar muito longe, sem saber ao certo se e como o bichinho vai pousar. 

Mas o Perseverance pousou e, tão logo sentiu a firmeza da superfície arenosa de Marte, passou a gravar os sons do planeta estranho, capturar as cores do deserto e gravar o céu durante a noite. O vídeo da noite marciana me chegou sem aviso, através dos stories do meu amigo André. André não sabe, mas talvez a grande função do robozinho da Nasa seja salpicar pelas redes sociais fotografias assombrosas de um lugar que não existe e nos despertar do tédio da vida terráquea.

Nas imagens, se vê que é noite, mas o céu não tem a profundidade calma das noites por aqui, não é um céu azul marinho com estrelas cintilantes, é antes uma explosão alaranjada de movimentos, violentas ondulações estrelares, giros alucinados de galáxias que deixam a impressão de sua coreografia no mapa astral do tempo. O céu de Marte explode e dança.

Inspirada para conexões improváveis, penso na cena de outro robozinho viajante: o meigo Wall-e, que deixou uma terra desabitada, exaurida e cheia de lixo em busca de sua EVA, a robozinha que tem uma muda de planta no lugar do coração. Em uma das cenas mais magicamente delicadas e suaves das animações da Pixar, Wall-e dança no espaço ao se deslocar, deixando uma rastro de detritos suspensos no nada.

Pois a Perseverance, que deveria ensinar sobre a biologia e a química alienígena, serviu no fim para expor a nudez de devaneios de bailarinos e poetas: afinal, somos em movimento! A eternidade não é um buraco imóvel de futuro e nada. O universo dança e deixa um registro musical em lampejos coloridos, com data certa para apagar, lampejos estampados em abóbadas que as lentes curiosas da NASA conseguem ver.

O céu de marte ouvirá ondas sonoras de salsa ou flamenco?

Do deserto marciano salto para outro deserto, achando graça do empenho que se faz para redescobrir saberes intuídos com singeleza e atenção. O poeta persa Rumi (1207-1273) filosofava em meio às areias e já sabia há tanto tempo que giramos e giramos e giramos, em ritmo intenso. São dele os versos:

Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.

Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.