Bemdito

Natalia Ginzburg: literatura sob escombros

A delicadeza de uma literatura sobre a memória, a perda e o luto
POR Juliana Diniz

A delicadeza de uma literatura sobre a memória, a perda e o luto

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Inverno na Itália. Uma neve fofa cobre os imensos espaços vazios das províncias de Abruzzo. Natalia gosta de sentir o ar frio enchendo os pulmões e se dedica a longas caminhadas, quase sempre acompanhada por Leone e as crianças. “Todas as tardes meu marido e eu dávamos um passeio: todas as tardes caminhávamos de braços dados, afundando os pés na neve. As casas que margeavam a rua eram habitadas por gente conhecida e amiga, e todos vinham à porta e nos diziam: “Muita saúde e paz”.

Era o início da década de quarenta do século XX. A escritora Natalia Ginzburg e seu marido Leone foram mandados para o confino, um exílio interno imposto pelo regime fascista a seus detratores. Quando escreveu sobre as reminiscências desse tempo gelado, mas relativamente seguro, Natalia confessa: “na época eu tinha fé num futuro fácil e feliz, rico de desejos satisfeitos, de experiências e de conquistas em comum. Mas aquele era o melhor tempo da minha vida, e só agora, que me escapou para sempre, só agora eu sei”.

Ao casal parecia insuportável dedicar-se a caminhadas e conversas de vila enquanto o país ardia pela violência política. Quando Mussolini foi deposto, em 1943, não demorou muito para que Leone Ginzburg partisse a Roma, onde passou a editar um jornal de resistência. O marido de Natalia era então um ativista visado pelo regime, casado com uma escritora jovem e bem relacionada com a mais refinada inteligência comunista da Itália. No círculo de Natalia, habitavam nomes como Cesare Pavese e Pier Paolo Pasolini.

A ação política de resistência cobrou um preço alto. Leone foi preso na confusão dos anos finais da guerra, e a vida que o casal conheceu em Abruzzo – uma vida onde era possível esperar um futuro – escapou pelos dedos. Assassinado em 1944 na prisão, Leone padeceu depois de sofrer sessões bárbaras de torturas, seviciado por perversas penitências, como a crucificação. A morte brutal do marido foi a primeira grande experiência de perda de Natalia – um presságio de que, mesmo após a guerra, sua vida seria marcada pelo luto.

Ela escreverá obras preciosas. Uma, em particular, revela com primor literário as sutilezas de seu temperamento: a coletânea de crônicas, ensaios e reminiscências “As pequenas virtudes”.

Um livro menos festejado do que merece, publicado para ser coadjuvante ao lado da obra de seus contemporâneos célebres, singelo só na aparência. Na beleza de seu refinamento silencioso, é um dos mais potentes registros históricos dos efeitos da guerra e do trauma coletivo sobre o espírito de uma geração. A potência a que me refiro tem pouco a ver com a pungência de uma dor que maltrata tanto a ponto de se tornar grito – longe disso. As linhas de muitos de seus companheiros são capazes de nos gelar os ossos pela verdade do horror e da barbárie, basta lembrar do sofrimento que perpassa a obra de Primo Levi, sobretudo no livro “A trégua”.

As linhas de Natalia Ginzburg, ao contrário, não provocam pesadelos. Têm uma calma suave, uma melancolia sutil em que transparece um sobrenatural autocontrole, uma capacidade de se manter firme e centrada, apesar da devastação interior. É uma literatura sobre a memória e sobre o silêncio, sobre atravessar o luto e escavar em meio a destroços. Intimista mesmo quando não está propriamente recolhida em memórias sobre a intimidade. Ler Natália é como experimentar um passeio ao seu lado. Sinto que somos boas amigas e podemos compartilhar dúvidas, leituras e restos de dores passadas.

“A tristeza que a cidade nos inspira toda vez que regressamos a ela está nesse sentir-se em casa e sentirmos ao mesmo tempo que nós, em nossa casa, não temos mais motivos para estar; porque aqui, em nossa casa, em nossa cidade, na cidade onde passamos a juventude, permanecem agora poucas coisas vivas, e somos acolhidos por uma massa de memórias e sombras.”

Ao seu lado, enquanto afasta as ruínas para escrever o belíssimo texto “Retrato de um amigo”, quem parece permanecer é o poeta Cesare Pavese. Pavese suicidou-se em 1950, atormentado pela guerra que o vitimou. Deixou um bilhete com três frases. “Trabalhei, dei poesia aos homens e partilhei as mágoas de muitos”. “O homem mortal, Leuco, nada tem de imortal a não ser a memória que deixa”. “Andei à minha procura”.

Perder Pavese para o desespero do suicídio foi mais uma provação por que passou a escritora italiana, ainda em luto pela morte do marido. No texto escrito como uma espécie de relicário, Natalia não apenas recupera os retratos do Pavese em sua juventude, mas escreve sobre a dificuldade de toda uma geração destruída pelo fascismo: domar os demônios da criatividade na urgência de uma guerra mundial. Pavese, assim como Primo Levi e tantos outros nomes da resistência, era homem “à procura de si”, sobrevivente, mas cravado de balas.

“Faltava-lhe, pois, conquistar a realidade cotidiana; mas ela era proibida e inapreensível para ele, que lhe dedicava ao mesmo tempo repulsa e sede; e assim não podia senão observá-la de intransponíveis distâncias.”

O luto é, afinal, a única companhia perene que a vida lhe permite e, em fins dos anos sessenta, Natalia Ginzburg revive a experiência da perda quando se vai Gabriele Baldini, seu pacato segundo marido, um professor de literatura. Muito diferente de Leone, que foi um judeu dedicado à militância apaixonada em tempos de turbulência política, Gabriele é um acadêmico ranzinza, protegido por sua erudição em uma vida sem sobressaltos. Ele também está presente em As pequenas virtudes, e podemos senti-lo na intimidade cálida da casa do casal. Uma perda menos dramática, sem as sevícias da violência, mas igualmente devastadora, pelo seu imprevisto.

“Às vezes me pergunto se éramos nós, aquelas duas pessoas, quase vinte anos atrás pela via Nazionale; duas pessoas que conversaram tão gentilmente, civilizadamente, no sol que se punha; que talvez tenham falado um pouco de tudo, e de nada; dois amáveis conversadores, dois jovens intelectuais a passeio; tão jovens, tão educados, tão distraídos, tão dispostos a fazer do outro um juízo distraidamente benévolo; tão dispostos a despedir-se um do outro para sempre, naquele pôr do sol, naquela esquina de rua.”

A literatura de Natalia me inspira respeito pelo ensinamento do que o luto nos provoca, por me fazer entender que a História nos atravessa, inevitavelmente. Quando me dou conta de que, na minha velhice, serei herdeira de um tempo onde a violência, a peste e o caos foram tão intensos, penso que nos meus modos, olhares e memórias também haverá o registro entristecido de uma época.

Não há nessa constatação nenhum elogio à melancolia. É mais o registro de uma identificação: como se dissesse a Natalia que entendo um pouco mais porque ela escreve como escreve. Gosto de nos imaginar caminhando em alguma viela italiana no fim da tarde, as ruas tingidas com aquele tom de dourado que só na Itália se vê. Estamos cansadas, mas em paz. Rimos de bobagens, trocamos confidências sobre aventuras amorosas mal sucedidas. Nos damos conta de que somos tristes, sem que isso pareça assustador. É a tristeza, afinal, que nos dá a matéria de vida sobre a qual escrever, porque quando estamos com a alma “feliz e saciada” temos dificuldade de sentir caridade pelos personagens miseráveis a quem precisamos dar vida, porque as histórias não se sustentam sem eles. Tenha respeito pelo tempo da tristeza, ela poderia dizer.

Escrever é maldição ou salvamento? Eu pergunto a Natalia. Ela me responde que é antes um ofício que vale, apesar de se nutrir “de coisas horríveis”, devorando “o melhor e o pior de nossas vidas, tanto nossos sentimentos ruins quanto sentimentos bons”. Um ofício que “nutre-se e cresce em nós”. Vale porque talvez seja o único ofício que permita guardar com tanta precisão e profundidade os retratos das nossas misérias individuais e coletivas. Misérias que nos perpassam, nos moldam e nos atormentam, seja quando nos debruçamos sobre os escombros do passado, seja quando tentamos conceber algum futuro.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Serviço

As pequenas virtudes
Natalia Ginzburg
120 pgs
Companhia das Letras, 2020
Preço: R$ 44,90

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.