Bemdito

Rachadura entre céu e chão

Reflexões sobre mover-se em brumas em tempos de desconexão
POR Glória Diógenes

Reflexões sobre mover-se em brumas em tempos de desconexão

Glória Diógenes
gloriadiogenes@gmail.com

Aterro do Flamengo, Fórum Global 1992, corri para ouvir Ailton Krenak. Havia também estado em um auditório lotado do Hotel Glória, no dia anterior, para escutar Dalai Lama. Intenso. Uma espécie de alvoroço na alma. A sensação nítida de deslocamento de um chão costumeiro. Eu, a criatura marcada por uma feroz racionalidade, da vontade de tudo explicar, dominar, me vi ali diante de um terreno envolto em brumas.

Como boa geminiana com ascendente em gêmeos, fui longe. Lembrei de um livro, sem grandes destaques de críticos, denominado As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Nas últimas páginas, Morgana, a deusa dos ritos pagãos, segue vozes de um cântico e chega a uma celebração religiosa. Coberta com mantos, petrificada numa estátua, de olhar cabisbaixo, passiva, estava lá Nossa Senhora. Morgana sopra uma espécie de profecia – a humanidade vai demorar a saber, novamente, mover-se entre brumas. Aquela imagem se fixou às outras palavras. Havia um fio interligando tudo.

Em 1989, li uma entrevista concedida por Krenak à revista Teoria e Debate denominada Receber Sonhos. Perguntavam os entrevistadores como o sonho atuava na composição de sua sabedoria. Ailton responde “o sonho é o instante em que nós estamos conversando e ouvindo os nossos motivos, os nossos sábios, que não transitam aqui nesta realidade. É um instante de conhecimento que não coexiste com este tempo aqui”. Indaguei, me pus a pensar. O que nos separa daquilo que não vemos, do que não alcançamos diante dos anteparos de uma visão talhada nos marcos da razão moderna? Na escuta entre o que pensava, o que pensava que sabia, o que apenas pressentia, fui suavizando o pensamento. Sim, Krenak, “não podemos agir como seres externos aos eventos. Somos parte dos eventos”. E isso nunca fez tanto sentido.

Com essa pandemia, que já atravessa um ano de nossas vidas, parodiando Sartre, fomos condenados, de forma radical, a estar à frente de nós mesmos. Raramente, tivemos tanto que fazer o esforço de enxergar entre zonas nebulosas, de estar diante da humanidade inquieta que nos habita. E quando se diz, nós também somos o vírus, com isso não se quer falar de culpa ou vitimização. Significa considerar que somos parte de uma malha, que nos atravessa e se estende. Tudo dói agora, tal qual ferida aberta. Rachadura nítida de um rasgo que sempre esteve lá. O corpo planeta gritando alto, nossos corpos acusando existências esquecidas. Do tanto tempo vivido para fora, para o trabalho, para o frenesi dos acontecimentos. Vácuo desenhado em tintas grossas.

Estamos diante de incontáveis incertezas. Talvez seja a hora de convocar sentimentos guardados, lançados ao domínio das religiões – a humildade (somos frágeis sim, trancados em nossas fortalezas), o respeito à vida (natureza humana, animal e seres invisíveis), a fraternidade cerzida em fios de existência. Afirmação quem sabe de outros racionalismos, se é essa a palavra, povoados de silêncio, de escuta do mistério, do exercício da compaixão, da abertura ao outro. Aproveitar a rasgadura do que se pensava ter, a fina lâmina do desamparo, e mover-se entre dentro e fora, na percepção lúcida de que estamos todas e todos na mesma tempestade, no mesmo barco.

Lá fora, gente não tem o que comer, chora, desespera-se. Outros se debatem com o vazio de futuro. Desvarios, delírios de uma mente cruel, pactos (planejados) de morte regem a orquestra do país. Sim, é verdade. É também verdade que esse cataclismo nos convoca. Ao contrário daquilo que muitos prescrevem e alardeiam, provavelmente, não é por dentro do caldo da ira, da vontade de morte de si e do outro, da cadeia interminável de vinganças, que faremos despontar um tempo de mais justiça, empatia e igualdade. As armas do ódio já mostraram para onde não queremos ir.

Resta então enfrentar o desafio cotidiano de saber o que nos falta, ou como bem dizia Ignacy Sachs, eco-economista que também conheci na Eco-92 – “identificar o que nos separa, convocar o que nos une”. Traçar alianças, desde si mesmo até a uma extensiva e diversa rede de vozes e gestos. Alianças das diferenças. Isso vale para às próximas eleições, vale para os instantes minados e solitários de isolamento. Vale para “receber sonhos”. Vale para tatear caminhos entre brumas.

Glória Diógenes é doutora em Sociologia e professora da UFC. Está no Instagram.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).