Bemdito

Manual para fotografar o chão

Pequenas estratégias para investigar uma superfície em dias ruins
POR Iana Soares

Pequenas estratégias para investigar uma superfície em dias ruins

Iana Soares
ianascm@gmail.com

Explico. Antes do apocalipse, olhava para cima e tentava adivinhar qualquer coisa no movimento das nuvens. Procurava coelho, elefante, sorvete e até o rosto de alguém. Já encontrei muita coisa, inclusive fôlego. Ainda repito o gesto em dias ímpares, se consigo. Levanto o dedo indicador e diminuo as distâncias: encosto no infinito com muita facilidade quando sinto alegria. Agora, cabeça baixa e duas lágrimas, não vejo o céu.

Nestes tempos vazios de metáfora, encaro o chão com a dureza que me cabe. Antes, quando nem sabia juntar três palavras escritas, olhava para os quadrados das calçadas e montava um Tetris que me ajudava a caminhar. Outros pensamentos eram interrompidos e eu ficava muito empenhada em formar o maior número de figuras que se encaixassem no rumo de uma vitória silenciosa que nunca acontecia. Fecho os olhos. Entre a sala e o quarto, repito o jogo sem a esperteza da criança.

Quando pesa, mesmo com tanto azul e horizonte, é inevitável abaixar a cabeça. Já juntei centenas de pedras e conchas, risquei qualquer coisa na areia, observei a ausência de cava no meu pé esquerdo. Caminhei por mais de 40 minutos e fui capaz de olhar várias vezes aquela marca esquisita e sem precedentes, só minha. Foi assim, por acaso e não por ofício, que comecei a colecionar imagens para tocar o peso com os olhos. Para guardá-las, precisei construir novas gavetas. Abrir espaços.

Empresto o método. Faça do desamparo uma lente e contemple a superfície. Percorra toda insignificância que encontrar. Demore nas imperfeições. Invente um feitiço e misture tudo que estiver ao alcance: a paisagem, o sonho, a saudade. Experimente registrar o que for possível. Repita várias vezes, nos dias pares, principalmente. Não tenha pressa para descobrir que no chão não há respostas. Nem no céu.

Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.