Bemdito

Vertigem no céu de Quixadá

O que a iminência da queda diz sobre a beleza do voo
POR Raisa Christina

O que a iminência da queda diz sobre a beleza do voo

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

O tempo enrijece e compõe estranhos nós nas articulações do relevo. Sobre determinados pontos do solo quente e raso em Quixadá, município do sertão central cearense, as térmicas assobiam e crescem. As camadas acumuladas de memória geológica vão gravando serrotes acinzentados e íngremes, os monólitos, que demarcam o horizonte com elevações das mais diversas formas.

No início da década de noventa, deram-se as experiências pioneiras de voo livre no local. Os saltos de asa-delta foram vislumbrados por Antônio Almeida, um aventureiro, e partiram da serra do Urucum, cuja estrada de acesso mal havia sido aberta pelo então bispo da região, Dom Adélio Tomasin, que na época iniciava a construção do Santuário Nossa Senhora Rainha do Sertão.

Idson Ricart era o amigo mais jovem e descolado de meu pai. Dava aulas de violão a Bruno, meu irmão do meio, deixando cair por debaixo do boné os cachos compridos. Éramos crianças e residíamos naquela pequena cidade sob testemunho das pedras. Lembro-me de quando Idson comentou, em seu tom grave habitual, a respeito do voo duplo que fizera certa tarde, do alto da serra do Urucum. “Como é voar, afinal?”, perguntei-lhe, de olhos grandes. “Não dá pra explicar, é como se eu tivesse que descrever o sabor da maçã a alguém que nunca experimentou a fruta”, ele disse num sorriso sério, e aquilo me intrigou.

Reparava no movimento da cidade todo ano por volta de outubro, quando apareciam caras novas perambulando pelo centro e o céu logo fervilhava de planadores coloridos rasgando os ares. Durante o campeonato mundial de voo livre, gostava de observar os forasteiros anônimos deslizando junto à paisagem que eu havia herdado com carinho dos monólitos mais velhos. Qual o cheiro e o gosto do vento perto das nuvens? Não tinham medo de cair? Esperei duas décadas até conhecer um dos forasteiros de perto e finalmente lhe indagar minhas questões. Por um bonito acaso, Danilo Carvalho havia acompanhado Idson, o querido amigo músico, em seu primeiro salto naquele já distante fim de tarde.

Danilo contou que curiosamente o céu às vezes cheira a capim recém pisado. No meio de sua fala, eu já havia me lançado ao abismo da fabulação. Queria desabar, planar, comer a tal fruta em sua companhia. Danilo disse que não se deve saltar no meio das rajadas. Há um aprendizado anterior de percepção do comportamento das aves, das ondulações nos espelhos d’água e do balanço das plantas. Quando chove, a asa-delta é um guarda-chuva robusto e sobre a tela esticada batem as gotas que soam uma a uma ritmadas em coro, dentro da concha acústica formada pela estrutura triangular do planador. Se o bico pende para um lado, o cabo de aço do lado oposto emite um som e então se entende para que direção a asa aponta.

Depois de tentar vencer o coração que foge pela boca no instante do salto, Danilo se concentra. As manobras pouco lhe interessam. O corpo parece entrar num estado de embriaguez a cada novo voo, que sempre recobra o medo, a euforia, a perda de si diante da amplidão. Quando as nuvens são mais ralas e formam um teto quase homogêneo, pode-se aproximar delas e o voo torna-se muito confortável. Mas não se deve confundir as nuvens. As cumulonimbus, por exemplo, são perigosas, têm uma energia de atração tão forte que sugam aquilo que aparece nas extremidades. Há uma espécie de tormenta no interior delas.

Seu primeiro pouso foi uma “arborização”, no vocabulário dos pilotos. Durante o voo, ele dissolveu toda a gramática construída pelo instrutor e não controlou a asa, não reagiu, não atentou ao rádio, nem sequer pensou. O planador foi rapidamente perdendo altitude e, quando Danilo enfim se percebeu a poucos metros do chão, estirou os braços, fazendo o bico da asa apontar para o alto e imediatamente descer. Sentou-se sobre os galhos de um juazeiro, o único verde em meses de estiagem, não fossem seus olhos também verdes, plenos de sol e vertigem.

Danilo diz que o amor estaria mais perto da experiência do voo livre, essa busca constante pelo alinhamento com as correntes térmicas, aceitando o convite do sopro que ascende para se sustentar no ar. A paixão é a queda livre, o colapso – talvez haja a possibilidade de se abrir um pára-quedas ou talvez nem haja tempo para se pensar em coisa alguma e tudo já é fratura. Penso na fratura, é exatamente na fratura das superfícies mais dissecadas dos monólitos onde habitam bromélias de muitos tipos. Suas flores atraem mariposas. Entre suas folhas, aranhas espalham redes. A água da chuva se concentra na cavidade das folhas mais fundas e nesse mínimo tanque as rãs depositam ovos e corpos continuam a nascer, sempre prontos para a queda.

Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.