Bemdito

A aventura diária de não soltar as mãos da vida

Reflexões sobre a palavra, o corpo e as pequenas distrações que os envolvem
POR Glória Diógenes
Detalhe de tela da artista visual carioca Katia Wille

Diga que eu só vou voltar, quando me encontrar…
Cartola

Após a publicação do último artigo do Bemdito, Viajar sem sair do lugar, Ethel de Paula, a jornalista encantadora de palavras, comentou — estranho… aprendo com essa experiência sufocante da pandemia que a escrita tem asinhas pequenas ou não me leva, sozinha, tão alto quanto eu imaginava. Preciso mesmo é andar, descobrir pé ante pé o que acontece na esquina, algo como ver com os pés, de corpo inteiro, conversar com a vida ao rés do chão, enchendo os olhos de poeira… isso é que me move, inclusive para escrever. Fiquei a pensar quantas vezes o ato de escrever me impediu de sair correndo, levantar, cruzar portas, arriscar. As palavras de Ethel não pararam de me interpelar.  

O povo do interior do Ceará faz uso de um termo não habitualmente usado na cidade. Quando alguém se sente impedido de sair, de mover-se, transitar, se costuma dizer — está enchiqueirado. A expressão vem de chiqueiro, lugar em que alguns animais ficam presos, para evitar possíveis fugas, roubos, ou simplesmente para engordá-los. A observação de Ethel evocou o sertão da minha infância. O roçado, os currais, o rio, as plantações, os prados, as estradas longas e, no reverso, o circuito fechado da casa.   

Éramos quatro irmãos. Três meninos com idades próximas. Frequentemente, se engalfinhavam. Brigavam por espaço, por brinquedos, por atenção, por nada. Minha mãe enfurecida, bradava — se continuarem assim, quero nem saber, vão me encontrar longe, andando feito louca, sem destino. Aquela ameaça aquietava toda a prole. Mais que nunca, eu me ausentava. Mergulhava nos livros que faziam barulhos em tons silenciosos, que entravam em duelos sem feridas visíveis.  

Escrevia tentando afastar o risco de ver partir a mãe, tal qual enunciava ela em sílabas sonoras, se continuarem vão ter que me buscar nos con-fins do mun-do, escutaram? Descobri desde cedo o significado da palavra — aquilo que é extremo, que faz fronteira, lugar muito remoto. Eis que um termo correlato, nos ventos recentes da pandemia que assolou todo o planeta, volta a ser repetido, em versão contrária. Confinado — aquele que se confinou; privado da sua liberdade; impedido de sair do lugar onde se encontra ou de ultrapassar limites e fronteiras. De um lado, a fuga para longe, o impulso de cruzar a porta com destino incerto. Na outra ponta, o isolamento. Vida que nos acena entre extremos.   

Ethel, é que a visão da cadeira vermelha — lombar recostada, pernas imóveis, olhos cravados na tela — nos últimos dias, me faz querer fugir sem paradeiro. Sábios filósofos já diziam, sair correndo pode ser a potência de resistir dos corpos que não aguentam mais. Escrever é sentar-se. Enquanto a palavra é desenhada, pintados os tons das narrativas, há fome. Você reparou? No texto “o imperativo da literatura”, Gonçalo Tavares fala que quando escreve sente o combate entre a cadeira e a janela. Diz ele que parece uma luta de boxe, porque o problema de quem escreve é a janela.  E nunca elas, as janelas, nos fizeram sonhar tanto com o quê os pés não alcançam, as mãos não tocam. 

Sim. Sei que as palavras se movem. Imagino o tempo intensivo delas, as emoções, os arrebatamentos gotejando do tônus de cada linha. Vejo que causam fenômenos, tais como erupções de vulcões, tsunamis, tornados e tempestades. Têm vida própria. Soletram narrativas que dormem em estado de latência. Até já fiz ode, em outro escrito do Bemdito, à força das metáforas. Mas, agora não. Tenho urgência.  O tempo de dentro clama por sujar-se de vida. 

Tem sol bonito lá fora, imagino o mar criando convidativas piscininhas. Um moço me chama e penso se tem as duas doses da vacina, se evita aglomerações, se segue protocolos. Arre, como diz Caieiro, estou farta de escrever sobre, de sentar-me enquanto as horas passam, chega de abstrações! É amiga, as escritas têm asinhas pequenas. Setembro, outubro, novembro o nomeado tempo de ventania dos “bros”, quem sabe facilitará a timidez das asas. Distraídas venceremos, tal qual grita o poeta. 

Stephen King, em contradito, no livro “Sobre a escrita”, diz que é aconselhável ao iniciante eliminar todas as distrações possíveis. Será isso que torna alguém escritor? Preciso delas como da água que bebo. Dia desses, em uma viagem, tivemos que parar o carro para deixar atravessar uma manada, que seguia sem pressa nenhuma. O vaqueiro, em um cavalo, cumpria o mesmo compasso do trotar dos bois e vacas. Manso, certeiro, ágil, a evitar a dispersão dos bichos. Distraída, transportei-me. Queria ser os bois, o homem que tangia, a areia fina que cobria a pequena estrada de terra. Longe da cadeira vermelha. No extremo da escrita que anseia por lá fora.  

Como faremos? Também quero conversar com a vida ao rés do chão. Esse ofício do ler, do escrever, do pensar, do espetáculo das palavras, da torrente de lives, nos deixa longe das janelas. Quero os corpos deformados, aquilo que Carmen Soares chama de “teatro do povo”. A contravenção dos atores que invertem a ordem das coisas. Andam com as mãos, lançam-se no espaço, contorcem-se, encaixam-se em potes, imitam bichos, vozes, cospem fogo, vertem líquidos inesperados, gargalham e vivem em grupos. Esse povo que se distraí e distrai gestos fixados pela mecânica das horas. 

O corpo nunca expôs tanto suas razões. Uma fisioterapeuta amiga falou que as queixas de dores se multiplicam nas clínicas e consultórios. Esquecidos, confinados, aquietados em limites da racionalidade do trabalho, anseia-se pelos finais de semana para outros tipos de entorpecimento. Uma revista sobre saúde diz que o trabalho em casa, o sedentarismo e o estresse dos dias atuais têm um desdobramento direto e doloroso em músculos, articulações e outras estruturas do corpo. Basta ver, não é? Basta sentir. Vidas usadas até a exaustão. Tão descuidados quanto o planeta em que vivem.  

Alguém me tira dessa cadeira e me convida pra’ passear? Boto máscara, levo álcool gel e vou. Aviso. Não responderei por um tempo os whatsapps. Que me perdoem as pernas benfazejas das palavras, o jogo aprazível das letras, a acolhida afável dos leitores, está suspenso o combate entre janela e cadeira. Quero mesmo é tanger, roçar, dobrar, pular, lamber, gozar, fugida do corpo da escrita. Perguntarão — aonde foi? Alguns, apenas dirão – não sei. 

Talvez, você que lê desça, também.  Abra a janela. Letras atravessarão a pequena estrada em ritmo de lentidão. Atitude de quem insiste em não soltar as mãos da vida. Ethel, estará gravado no pórtico – escreverá como quem anda, caminhará como quem escreve.  

Atenderemos o adiado convite do corpo. Ufa! Ainda bem que não expirou. Seremos vistas em lugares que sequer antevíamos.

Alguns, poderão até aludir – valha, ficaram loucas. Diremos – esse é apenas um nome que fechou as janelas de muitas mulheres. Seguiremos. Rascunhando entre pés, mãos, olhos e imaginação, letras empoeiradas. Palavras sujas, rotas, escorridas, mal traçadas, e errantes.   

Saí. Preciso me(te) encontrar.

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).