Bemdito

Anedota de Uber vazio

No banco de trás, uma mulher carregando flores em um saco de papelão: um arranjo delicado demais para ser invisível
POR Ana Eduarda Diehl

– E você, o que é que fazia antes de ser Uber?

– Há três anos eu tentava traduzir, agora sou só Uber. 

Frederico se sentiu parte de um questionário sociológico. Ao professor não restava mais nada a dizer, senão que sim, que está tudo muito difícil. Nesse caso seria melhor comentar do tempo, do trânsito, do presidente, ou sustentar o peso do ar parado, dissimulando alguma distração que evitasse o desconforto de dois homens em uma rua congestionada. Sabiam que faziam parte do mesmo mundo, embora um deles estivesse apartado.

Agora sou só o uber. Foi o que lhe havia dito, como se a vida  fosse drenada a cada bueiro no caminho das cinco quadras percorridas por sete míseros reais. Pelo litro da gasolina, nenhuma compensação. Não seria melhor deixar o professor recorrer às próprias pernas? Levou uma multa em um cruzamento confuso pouco antes de chegar ao destino. De certo não havia atentado aos sinais.

Frederico tinha grandes pretensões literárias, mas acabou achatado no fosso mínimo que  separava a classe média da grande massa de miseráveis de seu país miserável, de modo que ao fim de cada mês pagava as contas, embora já não lhe sobrasse para os livros. Ele julgava que, em condição pior que a sua, apenas os motoboys que precisavam avançar na corrida contra o tempo.

Lhe entretiam os adesivos das motos, mensagens quase sempre esperançosas que conferiam melodia ao barulho das hondas.  Por trás das bolsas de entrega, Frederico lia coisas como

Senhor, não deixe que três reais de entrega se tornem lágrimas nos olhos da minha família.

O moço não tinha fé, mas achava a fé muito bonita porque mesmo quando deserto, tinha rompantes de sensibilidade onde era  tomado de espécie de  espanto ou crise do pânico às avessas,  coisa a qual os médicos não davam nome e tampouco ele fazia questão de medicar. 

Havia nascido com sopro no coração, um mal de nascença sem cura e presságio de uma vida  frágil.  Para Frederico, a regência de Deus era uma graça destinada só aos outros. Ele era regido sob os desígnios de uma delicadeza inscrita no peito.

Um coração perfurado, encerrado nos limites de uma caixa toráxica 
por vezes parecia que lhe escaparia à boca
sob o risco de umedecer a cidade no meio de uma crise hídrica

Frederico se pegava comovido em pensamento, porque mesmo ateu descrente de tudo, sonhava consigo a mais banal das realidades: uma companheira que lhe preparasse a comida, como se o retorno ao lar depois de um longo expediente pudesse ser uma chegança, um acontecimento envolto de barulhos, crianças, televisão, cachorro, vizinhos. Barulhos que amenizassem os ruídos metálicos e as risadas que assombravam o corredor à noite. Barulhos que pudessem criar uma atmosfera englobante, barulhos de um mundo seu, que tão oco em si mesmo era apenas eco dos ruídos alheios.

Nada disso lhe foi possível e Frederico foi encolhendo pra dentro, vivendo de uma sensibilidade mínima. Por vezes parava para contemplar o movimento das praças,  outras tantas repousava no balcão para tomar um pingado e escutar histórias bêbadas de quem arcava o próprio vício. O jovem tinha a sensação de que a vida se passava do lado de fora, como uma graça concedida aos que trabalhavam e se enamoravam  como pessoas normais.

Na recolhida, tudo era silêncio e paredes encardidas. Um quarto, um banheiro, uma kitnet central, sem nenhum adereço ou detalhe que pudesse denunciar as paredes como um abrigo. Francisco se deitava para dormir e os sonhos eram repletos de vozes que passavam ao longe, os quais, por puro cansaço, ele jamais conseguia traduzir.

Pegar o sonho no pulo  demanda alguma habilidade e ele não estava apto ao sonhar, de modo que o mundo ia se reduzindo ao uber, à kitnet estreita, a ausência de um espelho que lhe confirmasse o corpo ainda robusto, na passagem dos vinte para a próxima década. Sabia que havia chão, embora estivesse paralisado na impossibilidade das pernas: o jovem estava aleijado da possibilidade. Andava mais por rastejo que insistência.

Mas nem tudo se reduzia a nada. São Paulo em maio, por exemplo, era uma alegria. O outono lhe amansava por dentro. Talvez fosse a amenidade do clima ou o céu mais azul. Talvez porque a aproximação da metade do ano tirasse o mundo do alvoroço que possuem os começos e os fins. Quem sabe porque o meio de qualquer coisa possibilitasse o repouso na normalidade, distante das obrigações comemorativas, do balanço de ganhos e perdas, da memória em retrospecto a cada novo fim, quando os anos já lhe pareciam todos iguais.

Frederico tinha o hábito de estacionar nos arredores da Liberdade para fazer suas pausas. Acontecia de se imaginar um taxista senhor de si em seus momentos de folga. Uber dormindo, tomando café e fumando com seus comparsas de aplicativo era um sonho impossível. De certo é porque o mundo andava piorando das pernas e agora era necessário correr demais da conta.

Em meio ao caos do bairro oriental, Frederico se sentia mais um. Talvez se tivesse mais amor em vida, seria feliz em sua condição de anônimo. Sozinho como era, sentia-se um pouco como ninguém. Quem sabe se houvesse companhia, a Liberdade seria mais bela.

Na volta ao trabalho, a primeira corrida da tarde levava uma moça de traços japoneses, carregando um saco de papelão em perfeito estado,  repleto de flores delicadas que contrastavam com o cheiro do odorizador. Talvez fosse o outono, a sorte de um céu polido, ou quem sabe a soma dos traços delicados da jovem que só carregava suas flores e olhava pela janela como se nada. Como se a corrida não fosse a pressa em chegar.

A experiência de Frederico distinguia os tipos possíveis de passageiros dentro de uma fauna vasta: empreendedores paulistas e suas dez mil ligações. Jovens enfeitadas e o anseio pelo destino de chegada. Artistas forjados no linho, seus ares de projeto, tudo muito São Paulo. Mas sentindo que não havia nada que fosse tão seu, Frederico jamais abriu a porta das coisas pessoais, tampouco insistia em perguntas invasivas, por mais curiosas que fossem as criaturas do banco de trás.

No seu total de três mil e trinta e duas corridas havia presenciado o término de um relacionamento do qual ele poderia facilmente tomar partido da mulher. O desengonço de alguém que precisaria  pular do carro em plena marginal,  mas que soluçava por não poder sequer o grito. Uma corrida que parecia infinita, que não valia os vinte e cinco reais mais custosos da vida.

Apesar das muitas curiosidades, Frederico não interagia. Se via como espectador passivo da experiência humana. Via as brigas e as lágrimas, a pressa e o entorpecimento e sabia que nada daquilo pertencia tão intimamente a sua própria esfera. Estava  tão desabituado às coisas que eram demais, que se espantava com emoções que brotavam do desconhecido. Tudo a Frederico era alheio, na exata medida em que era muito próximo: não havia muito porquê ou por quem se doer, embora o mundo lhe custasse um tanto. 

Se identificou com a moça  no banco de trás porque nada nela apontava para coisa alguma. Nenhum traço de ansiedade,  acessório nas orelhas ou no pescoço, nenhuma cor que não o branco, um corte reto pouco conceitual. Frederico a espiava de canto de olho reparando que o olhar dela não se detinha em nada.

 Mirava pela janela como houvesse paisagem no caminho, como se nada fosse tão cinza que valesse a demora, enquanto Frederico olhava para a moça como quem atina para o clarão da mata: o espaço entre as árvores aponta para o caminho do céu, e no entanto a sua frente a paisagem se reduzia a duas fileiras em uma viaduto escuro. Era tudo que a vista alcançava.

A originação do espaço era mesmo um mistério, assim como deve ser o nascer e o morrer de uma anã vermelha. Os corpos celestiais não deixam rastro de barulho. O espaço é um lugar profundamente silencioso e na 97.3 era John Cage o que se ouvia.

A moça pediu para fechar a janela, os gases do túnel fechado lhe asfixiavam a graça e no entanto Frederico respirava como quem não retinha ar na mecânica dos pulmões. Respirava profundo como se tivesse poros para um mundo onde a feiura agressiva dos carros emparedados tornasse possível a existência de uma beleza. No banco de trás, a mulher carregando suas flores em um saco de papelão: um arranjo delicado demais para ser invisível.

Havia sido sua corrida de número três mil e trinta e três, valor total de R$ 57,80 e nenhuma moeda de troco.

Ana Eduarda Diehl

Ana Eduarda Diehl é uma espécie de antropoeta. Curitibana, é mestranda e desenvolve projetos culturais na intersecção entre memória, escuta e escrita.