Bemdito

Fiquemos atentos aos “normais”

Delas e deles emergem uma boa dose de realidade que os curadores da suposta comunicação relevante nem sempre nos apresentam
POR Cláudio Sena
Foto: Reprodução

Além das propagandas indesejadas de produtos que nos perseguem a partir de rastros que deixamos no ciberespaço, compõem, geralmente, nosso feed das redes sociais, perfis de referências, personificadas ou não. Especialistas em algo que nos atrai por necessidade ou prazer dos mais efêmeros possíveis. Neste conjunto difícil de ranquear, pela falta de critérios de semelhanças, tem vídeo de mãos espremendo cravos às dicas imperdíveis de como investir e fazer o dinheiro trabalhar para você. Misture a isso os influenciadores às vezes específicos e altamente capacitados (é o que dizem, pelo menos, somados àqueles que topam tudo por dinheiro. Há vezes em que é preciso gerar conteúdo pelas contas do Instagram e Youtube para pagar aquelas outras que se acumulam mensalmente. 

Para que essa roda funcione, a gente precisa participar, mesmo como coadjuvante, interagindo com objetos inanimados, imagens e textos que, por algum motivo, seguimos, acompanhamos, damos like e interagimos. Certamente, estaremos lá nos relatórios mensais e na elaboração da lista de leads captados. Ora, o Google não é de graça. Faz parte do jogo. É isso ou correr para as montanhas, longe dos sinais de Wi-fi. 

Mas há, além do suco de amigos, publicidade e coisas que nos engrandecem o qual bebemos diariamente, os que aqui chamo de “normais”. Eles e elas têm poucos seguidores, não sabem muito bem dos recursos das redes e muitos menos utilizá-los. Chegaram atrasados ao Instagram. Não entendem o Twitter. Frequentam melhor e mais o Facebook. Arrisco dizer que são a maior parte. Recheiam comentários de notícia sobre quase tudo, dos índices Bovespa ao casal que se forma e que se separa e que retoma. É gente, vida real que se desenha.

Não adianta julgar, traçar régua de bom senso e uso “correto” da Internet. Quantos desses vocês seguem? Ou preferem lapidar suas redes, expulsando intrusos, edificando e enriquecendo seu tempo com que te dá retorno a partir de uma risada, de dinheiro ou de intelecto sublime? Interessante é que, às vezes, são esses e essas “normais” nossos familiares e amigos não habituados à sociabilidade virtual que, apesar de querer o melhor para a gente, representam, com desempenho medalhístico, a normalidade, a vida como ela é. 

Compreensível que muitos de nós, que chegamos aqui quando era tudo mato e pixel, tenhamos perdido a paciência com aqueles que conheceram depois estes canais virtuais de comunicação ou que nasceram após a gente, mas que dominam a linguagem e a velocidade das mudanças com habilidade. (Nesta frase, acabo por, de algum modo,  projetar um perfil dos leitores do Bemdito. Desculpem.) Independentemente de eliminarmos os que incomodam – os piadistas, os grosseiros, os pedantes, os ególatras – ou aqueles que são inocentes e, talvez, um pouco perdidos aos nossos olhos, a maioria “normal” estará presente. Duvida?

Coloca o pé do lado de fora das redes então. Vai ao Centro da Cidade, ao Estádio de Futebol, ao Saldão Rabelo, à Feira da Parangaba, ao Iguatemi ou ao RioMar Kennedy no domingo. Nesses locais, padrões e posições sociais são desestabilizados, longe do nosso controle, algo que podemos tentar evitar nas redes sociais. Aparecem como espaços de fluxo, porém também convertem-se em lugares de interações e relações sociais duradouras. Nem sempre são organizados, bem mediados, justos, mas existem, mesmo que nosso desejo seja dar unfollow ou tirá-los da nossa tela em alguns casos e momentos específicos. 

Ocorre que o choque de preferências, gostos e opiniões é próprio do campo democrático da web, mesmo que isso nos irrite e nos gere estranhamento. O vendedor de torresmo na live do governador do Ceará em plena pandemia é um caso extremo destes encontros inesperados. De um lado, o gestor do Estado do Ceará tratando especificamente de uma questão de saúde pública. De outro, um sujeito querendo resolver seu problema financeiro emergencial pela comercialização de um pedaço do suíno. A considerar o consumo excessivo deste produto e o pedaço do porco comercializado, no final das contas, não deixa de ser também, a longo prazo, um caso de saúde pública. 

Gente “normal”, minhas amigas e meus amigos, tem algo a dizer. Fiquemos atentos. Delas e deles emergem insatisfações e satisfações, anseios, racionalidade, emoções, ou seja, uma boa dose de realidade que os curadores da suposta comunicação relevante nem sempre nos apresentam. Espero que este texto não soe pedante. Até porque, no final das contas, somos todos e todas “normais”, a depender de quem nos classifica. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.