Bemdito

Vento norte

Memórias saudosas do amigo Francisco sobre Concepción, no Chile
POR Raisa Christina
Ilustração: Raisa Christina

Há alguns anos conheço Francisco, primeiramente de vista, da época em que era comum esbarrar-se com massas de gente pelos eventos festivos da cidade. Depois nos tornamos amigos e fui tentando perceber como se deram aquelas nuvens de charme e melancolia suave em torno dele.

O português ainda tão agarrado ao sotaque castelhano denuncia seu lugar de estrangeiro: chileno da “capital do sul” que migrou para Santiago, depois para o velho continente até fixar-se na quinta cidade mais populosa do Brasil, no litoral do Ceará.

“Vim de uma cidade que sofreu onze grandes terremotos, seis dos quais a destruíram por completo”, contou-me o amigo, no mesmo dia em que lhe disse que havia me casado pela segunda vez. Não tinha ideia da história de Concepción e imediatamente apoiei o queixo sobre a mão, enrugando a testa.

Era difícil imaginar por que razões um povo insiste em erguer edifícios, abrir avenidas, estabelecer negócios, constituir família, desenhar laços afetivos e profissionais, residir, enfim, permanecer num local cujo solo é permanentemente instável. 

No artigo intitulado Terremotos en Concepción: observaciones acerca de una ciudad sin memoria, escrito por Francisco em 2000, ele supõe que talvez nenhum habitante de Concepción tenha conhecido a cidade de seu bisavô. Pois considera um tempo médio entre gerações de vinte e três anos e leva em conta que o lugar foi arrasado onze vezes em diferentes níveis desde a sua fundação, no meio do século XVI. Desde então, a cidade vem provando constantemente esse processo de reconstrução.

Por sorte Francisco não experienciou terremotos, mas os relatos das tragédias o acompanham. Um deles é narrado por sua mãe, que se lembra de ter saído atordoada em busca da tia, no episódio histórico de 1960, quando viu a terra abrir-se numa fenda profunda diante dela.

Francisco formou-se em Arquitetura e trabalha em Fortaleza, levantando estruturas sobre o chão. Acho curioso o fato de ele ter escolhido tal profissão, tendo em vista que nasceu e foi criado numa cidade cujas construções periodicamente desabam por causa de acidentes naturais ainda difíceis de serem previstos com antecedência.  

Tento entender de que modo ele sente saudades, apego, pertencimento. Apesar de ter deixado a cidade natal aos dezenove anos – e sempre soube que a deixaria -, Francisco diz amá-la. Ao perguntar por suas memórias de infância, as mais frescas, ele responde: “Echo de menos pedalar ao lado do rio, em sentido contrário ao vento norte, que é o mais frio”.

Recorda a umidade absoluta da região pantanosa e plana, o cheiro dos pinheiros que começavam a se empilhar no bosque pelas costas de sua casa, o amarelo intenso dos Aromos, um tipo de Acácia que brilhava nas primaveras. Especialmente dos arreboles sente falta: as partículas rosadas que se derramam sobre o céu de Concepción quando o sol vai dormir no verão, por volta das vinte e uma horas. Elas não existem luminosas assim em mais nenhuma outra parte. 

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.