Bemdito

O jardim das contradições terrenas

Reflexões que se impõem a partir da decepção com um vizinho bolsonarista
POR Victor Hugo Siqueira
Landscape With Woman Gardening (Pierre-Auguste Renoir)

Uma das minhas primeiras atividades do dia é levar meu cachorro para passear. Poderia dar um tom idílico a essa relação, mas confesso que minha motivação é normalmente mundana: utilizo-me dele para ter meus minutos diários de paz. Não sou propriamente a pessoa mais sociável do mundo, mas, nesses momentos iniciais do dia, costumo observar e conversar com quem passa na rua. Tenho apreço especial por ver os idosos nas calçadas cuidando de suas plantas e colocando água e comida para gatos e cachorros que perambulam pela região. Seu Antônio da casa 04 era por quem nutria mais afeição.

Sua casa possui muros altos acinzentados, cerca elétrica intimidadora, placas de “cuidado, cão feroz” e de empresa de vigilância com monitoramento eletrônico. Um projeto de fortaleza, não fosse pela confissão que obtive há alguns meses em meio às gargalhadas que ecoavam pela rua ainda um tanto vazia: a cerca não funcionava fazia tempo, o cachorro era um poodle e ele não tinha dinheiro para a empresa de vigilância. Mas o que me impressionava naquela casa eram mesmo as plantas. O muro austero era coberto de trepadeiras exuberantes, que se abriam em flores azuis, brancas e amarelas. Folhas de bananeiras enraizadas do lado de dentro contornavam a cerca carente de eletricidade em direção à rua, em movimentos dignos de Fabiana Murer. Coqueiros irrompiam ao longo da calçada e espadas de Ogum circundavam a base daquela simbiose de cimento e vida. Sempre me fez bem demorar por ali. Até hoje.

Enquanto esperava meu cachorro, concentrado em seus movimentos peristálticos em frente à casa 04, reparei em duas novas placas. Elas estavam centralizadas no portão para carros. Como estava sem os óculos, cheguei mais perto para ver qual seria a brincadeira que seu Antônio havia preparado. As placas, coloridas em verde e amarelo, estampavam o mantra de um obscurantismo sociopolítico que tem buscado minar nosso sistema democrático, o que se dissociava do seu Antônio que acreditava conhecer. “Eu autorizo, presidente.”

Fiquei alguns instantes olhando para elas, absorto em uma incredulidade desconcertante, buscando compreender como alguém que zela com tanto amor e respeito por aquelas plantas e animais que ali buscam refúgio seria capaz de reproduzir uma frase carregada de tanto rancor e desprezo. Foi quando me veio à mente o capitão Celestino, protagonista do romance A visão das plantas, da escritora angolana-portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida.

Celestino é um homem desprezível. Deve sua vida ao mar, de onde retirou riqueza, fama e fantasmas. Um capitão de navio negreiro capaz de ordenar que seus homens despejassem cal no porão de uma embarcação em alto-mar, abarrotado de africanos escravizados. Sufocou a rebelião, asfixiando suas vozes e suas vidas, para depois sorver a maresia como quem aprecia o aroma de uma rosa. Esse passado abominável, entretanto, não o impediu de retornar à sua casa da infância, agora vazia e tomada por ervas daninhas, e erigisse ali o mais belo jardim que sua terra havia presenciado. As mãos que cavavam covas, agora aravam a terra. 

“As plantas viam o jardineiro como as plantas veem. Não se sentiam agradecidas. Tratavam o regador à semelhança da chuva que caía sobre elas nas noites de Outono. (…) Tanto lhes fazia serem cuidadas por um assassino, se eram sujas as mãos que as amparavam ou o que viera antes do amor que ele lhes dedicava. (…) Se lhes faltasse a rega, murchariam. Não seria por mal, não o levavam a mal. Nada esperavam dele.”

O paralelo entre seu Antônio e o capitão Celestino é obviamente hiperbólico. Mas as associações que nossa mente faz não são aleatórias. É sintomático que um homem que dedica parte significativa de seu dia ao cultivo do jardim, tratando com respeito cada uma daquelas plantas que se alegra tanto em ver desabrochar, que troca a água das vasilhas e limpa os comedouros disponibilizados aos animais em situação de rua, sempre simpático e cortês, possa se sentir atraído por um discurso tão abjeto quanto o esboçado naquela frase.

Ainda que ele, nos moldes do capitão Celestino, desprezasse a vida humana, especialmente aquela que considera inferior, mantendo-se indiferente ou até mesmo apoiando os genocídios perpetrados sem subterfúgios em nosso país, esperava-se que se levantasse contra o ecocídio praticado sobretudo na região amazônica, consumindo a flora, a fauna e as águas locais de maneira avassaladora. Até o mal latente traça uma linha que não se permite atravessar. Arrisco dizer que não se trata verdadeiramente de naturalização do mal ou do desgastado conceito de banalização. Esta categorização não dá conta da complexidade atualmente espraiada em nossa sociedade. 

A desinformação se espalha através do medo, do desespero, da angústia. Quem a manipula o faz de forma hábil e cultiva suas sementes como um jardineiro dedicado. O ódio é vendido como acolhimento, a raiva, como empatia, e o outro, como inimigo. Precisamos, assim, saber trabalhar esse terreno. Sujar as mãos de terra junto ao seu Antônio. Ombro a ombro. Entender como sua vegetação tem se desenvolvido, o porquê de certas ervas daninhas teimarem em brotar em determinados solos. Como a poda pode ser feita respeitando o desenvolvimento e as características de cada planta. A natureza não se desenvolve em busca de homogeneidade, mas de respeito e harmonia no florescer de cada organismo vivo.

A tarefa é árdua. Diferentemente das plantas, não consigo me manter alheio àquilo que destrói, maltrata, debocha, subjuga. E nem podemos. A natureza tem seus meios de encontrar equilíbrio, um balanço perfeito, embora tentemos diuturnamente impedi-la de realizar seu trabalho. Temos muito o que aprender com ela, mas, no que concerne à indiferença, precisamos nos tornar péssimos alunos.

Victor Hugo Siqueira

Defensor público e escritor. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, desenvolve pesquisas sobre o acesso à justiça de populações vulneráveis e história da escravidão.