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Ângela Diniz, o STF e a necessidade de reafirmar o óbvio

O STF reafirma o óbvio: uma sociedade não pode aceitar que a honra de alguém seja maior do que a vida
POR Alex Mourão

O STF reafirma o óbvio: uma sociedade não pode aceitar que a honra de alguém seja maior do que a vida

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

Em 1976 a morte de Ângela Diniz, assassinada pelo seu namorado Doca Street foi o estopim de todo um debate nacional sobre a chamada legítima defesa da honra. Basicamente era o direito que o homem traído ou confrontado pela sua companheira tinha de lavar sua honra com sangue. Havia uma simetria entre a vida da mulher insubmissa e a honra do homem. O peso de uma vida, da mulher, não se equiparava ao peso da honra masculina abalada com a insubmissão da mulher.

Naquele dezembro de 1976 na Praia dos Ossos em Cabo Frio, Ângela rompeu seu relacionamento com Doca e o expulsou de casa. Após sair de casa, ele retorna e dispara quatro vezes contra a cabeça da vítima. O assassinato chocou o país, mas chocou mais ainda a tese que a defesa usou para tentar absolver o acusado: a legítima defesa da honra. Para defender a honra manchada de Doca a defesa atacou a honra da morta, tanto que na época Carlos Drummond de Andrade chegou a dizer que “aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”.

Em seu primeiro julgamento, Doca foi condenado a dois anos de prisão com cumprimento em regime aberto. A tese de legítima defesa da honra foi aceita.

O debate tomou as ruas e movimentos de mulheres de todo o país se reuniram sob o slogan “quem ama não mata”, numa verdadeira corrente que ganhou força até que o julgamento foi anulado. Em 1981 em um novo julgamento Doca Street foi condenado a mais de quinze anos de prisão.

Mesmo 45 anos após a morte de Ângela Diniz e 40 anos após a condenação de seu assassino, o tema da legítima defesa da honra ainda assombra os tribunais brasileiros. Com menor frequência, é verdade, mas sempre espreitando. Na semana passada, em julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 779 no Supremo Tribunal Federal, o relator Ministro Dias Toffoli concedeu liminar determinando que é inconstitucional o argumento da legítima defesa da honra no tribunal do júri. Pelo entendimento do relator, já seguido também pelo Ministro Gilmar Mendes, tal tese tem fundamento no machismo e, portanto, é contrária a princípios básicos como igualdade e dignidade da pessoa humana.

Ainda estamos, depois de tanto tempo, reafirmando o óbvio: uma sociedade não pode aceitar que a honra de alguém seja maior do que a vida, no caso, que a honra de homens seja mais importante que a vida de mulheres. A ideia de plenitude de defesa no tribunal do júri não pode ser um vale tudo que ultrapassa a linha mínima de conquistas civilizatórias.

O Brasil é marcado por um triste quadro de violência contra mulheres, com números alarmantes apesar das iniciativas legislativas, como a Lei Maria da Penha e a qualificadora do feminicídio. Ainda assim os números são assustadores. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, são quase 300 denúncias de violência desse tipo por dia. Lembrando que um traço desse tipo de violência, que muito ocorre dentro de casa, é a cifra oculta, ou seja, a baixa notificação oficial da ocorrência. Com a pandemia da Covid-19 o quadro se agravou ainda mais.

O número de casos de feminicídio tem crescido ano a ano, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somente nos primeiros seis meses de 2020 foram 648 casos de mulheres mortas por conta do gênero feminino.

As leis, por si só, não conseguem mudar esse cenário de sofrimento e morte que o machismo impõe, é preciso mais debate na sociedade e um maior engajamento de todos e todas no sentido de entender que existe um problema sério e que precisa ser combatido. Ao contrário, se esse debate não for feito urgente, daqui a 40 ou 45 anos ainda estaremos assistindo decisões de Ministros do STF declarando que o machismo não foi recepcionado pela constituição, porém continuará impregnado na sociedade e continuaremos repetindo o óbvio.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.