Bemdito

Quem tem direito à literatura?

As encarnações do diabo nos filmes "O nome da rosa", "Fahrenheit 451" e "Que horas ela volta?"
POR Olivia B. de Avelar

O demônio e suas conveniências. A cada época, ocupa, oportunamente, um determinado fazer, um dado vestir, além de etnias e traços específicos. Porém, desde sua invenção, foi intrinsecamente forjado e talhado para ser o outro dos homens que o criaram: o demônio é a mulher e também os saberes que desmascaram seus criadores.

Onde mais, então, há de habitar o demônio dos dias de hoje, senão, mais uma vez, no conhecimento? Me refiro, especificamente, ao conhecimento que deve ser aprendido/lido: o saber pensar, de maneira autônoma e crítica, o saber orientador gravado nos livros.

Durante as conversas que resultaram na escolha dos filmes para o nosso clube, não conseguíamos avançar: emperramos, agarradas, girando em círculos ao redor da mesma – e aparentemente simples – pergunta: quem tem direito à literatura? A resposta mais desejada e ingênua nos inflava o peito: Todos! Todos nós! E a nossa exclamação apaixonada – a morrer, sem reverberar, estando abafada e recolhida – não encontrou eco na realidade lá fora.

Na impossibilidade de seguirmos adiante, retrocedemos. Não é o que se sugere fazer quando perdemos ou esquecemos algo? Refaça seus passos. Volte aos lugares por onde passou. Lembre-se daquilo que fez. Afastamos o rosto da parede silenciosa que nos impedia a passagem, dando passos para trás.

Felizmente, para esse caminho, sabíamos como continuar – um presente, recebido há muito tempo e guardado como um tesouro, nos serviria como amuleto protetor contra os maus agouros. Na vontade de percorrer os humanos passos do passado, trouxemos a chave, dada por Drummond, para essa busca pelas palavras: era ela quem nos garantiria a passagem.

Umberto Eco nos aguardava, à beira da primeira porta que abrimos para a oitava semana do clube do filme: “… um livro é uma criatura frágil, sofre o desgaste do tempo, teme os roedores, os elementos, as mãos desajeitadas…” nos disse ele, quando chegamos à abadia medieval do filme O nome da Rosa.

O fedor dos monges que saltava da tela, sua feiúra, seus semblantes contorcidos, suas vestes pesadas feito pedra: a dureza e a decadência palpável da ignorância daqueles que fechavam os livros atrás das pesadas portas feitas de tradição, exclusão e controle religioso. Na Idade Média, o saber pertencia ao divino e o diabo era humano, miserável, faminto, animalesco e vil. 


Terminado o filme, trancamos as pesadas portas de madeira e saltamos no tempo para abrir as modernas portas do futuro do pretérito mostrado no filme Fahrenheit 451 – a higiene imaculada das pessoas e das casas contrastava com a podridão da Itália do século 14. Os rostos destorcidos deram lugar aos semblantes apáticos, aos olhos sem vida que encaravam o vazio. E nessa paisagem suburbana e estéril, os livros despencaram do céu e caíram em desgraça – queimando, em enormes pilhas vermelhas de chamas – pelas mãos dos bombeiros, pelas mãos do estado.

Foi como virar a ampulheta do tempo: o ser humano, agora puro e limpo, subia ao topo e não poderia ser corrompido e maculado pelas ideias subversivas, impuras, sujas, baixas e demoníacas gravadas no papel. De personagens frágeis e que demandavam eterna vigilância, protegidos/aprisionados em altas torres, como as donzelas dos contos clássicos, os livros foram atirados à rua, ao escárnio público, ao ódio e à humilhação.

E quando nada mais parecia fazer sentido, nos preparamos para abrir a última porta que, na verdade, mais parecia com a toca estreita pela qual a pequena Alice perseguiu um coelho branco em uma tarde de tédio e calor de sua infância. Era uma porta que descia e não se sabia para onde. Era a porta que nos trouxe ao Brasil. 


Chegamos a um quarto escuro, abafado, sem ventilação, apertado entre uma cozinha luxuosa, a dispensa, e os produtos de limpeza, um quarto de empregada, um quarto de despejo – onde se lia nas paredes as palavras de Carolina Maria de Jesus: “preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” E o filme era Que horas ela volta?

Nunca antes, no Brasil, vivemos um período de tamanha expansão do acesso ao Ensino Superior quanto o iniciado após o ano de 2002. Nunca antes na história do nosso país existiram tantos movimentos e ativismos reivindicando direitos e cobrando deveres.

“Nunca antes, então por que agora?” É o pensamento recorrente da elite brasileira do atraso. Houve retaliação. Mais uma vez, como sempre foi – e desde muito antes de o Brasil ser Brasil -, as peças da história são continuamente manipuladas por aqueles que se privilegiam da fome do corpo, que assola boa parte da população e que impede que surja essa outra fome: a fome do “porquê”.

Por que não há escola para mim? Por que não chegarei à universidade? Por que a maioria dos políticos são homens brancos se a maioria da população é preta e mulher? Eles nunca vão nos responder. Ao ler a história, perceba: o diabo é a resposta. E um cristão/eleitor – obediente e submisso – não há de querer andar com esse povo de ideias, não é mesmo?

Os que contam com a ignorância em massa deixam claro qual é o castigo destinado àqueles que comem a maçã proibida. Porém, se mesmo assim você decidir pagar o preço moral de se libertar e aprender a pensar por si – não há saída: a maçã – ou seja, o livro – será cara demais e você não poderá comprá-la. Os livros: santificados no primeiro filme, humilhados no segundo, foram transformados – no nosso tempo e no nosso país – em mercadoria de luxo, em fetiche. 

Seguimos morrendo de fome. De todas elas. E o diabo conveniente segue ocupando todos os lugares que nos levariam, obviamente, não ao inferno cristão/fictício, mas a um Estado democrático de direito aqui mesmo na Terra. Um estado de ser que se constrói sobre os ombros dos grandes pensadores, dramaturgos, novelistas, contistas e poetas. Um estado maior, porque feito de homens e mulheres grandes, e que, sabendo de onde vieram, saberão para onde estão indo, porque reivindicarão seu direito de acesso aos saberes. E é esse o único e sagrado estado de graça que teria o meu mais sincero e fiel Amém.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.