Bemdito

A obscena senhora H

Talvez Hilda Hilst tenha nos legado, com sua obra, boas lições de mergulho em um susto que virou compreensão
POR Camille C. Branco

“Se te pareço noturna e imperfeita,
olha-me de novo”
(Hilda Hilst/ Dez chamamentos ao amigo)

Quando envelheceu, Hilda Hilst reuniu um número significativo de livros e cachorros e se mudou para uma casa no meio do mato. O local, até hoje aberto para visitação agendada em Campinas, agora é cercado por um condomínio residencial e, na época, foi batizado como “Casa do Sol”.

Durante algum tempo, a Casa do Sol funcionou também como retiro para jovens escritores, entre os quais esteve Caio Fernando Abreu, a quem Hilda educou com severidade estoica. Quando anoitecia, a autora percorria o terreno com um gravador, tentando captar as vozes de espíritos que poderiam querer se comunicar. A opção pelo isolamento nesse espaço foi calculada: Hilda estava saturada.

A autora parecia reunir todos os predicados possíveis: era inteligente, espantosamente prolífica, deslumbrante na aparência a ponto de suscitar os galanteios de Carlos Drummond de Andrade, que a chamou de “estrela Aldebarã”. Ainda muito jovem, perdeu o pai a quem amava, um pai que demenciou antes da morte e por vezes a confundia com a esposa, criando uma locução confusa de erotismo com Hilda. Esse dado a marcou de modo permanente, e uma inquietação com Deus, sua existência, a aparente arbitrariedade de seus desígnios, atravessou toda a sua obra.

Hilst, uma uspiana de formação jurídica, foi muito celebrada pelos críticos desde o primeiro momento. Foi traduzida para outros idiomas a duras penas, uma vez que as imagens que construiu não são simples de serem extraídas dos cercos da língua portuguesa. Em contrapartida, embora reconhecida como grande autora, em vida ela foi pouco lida. Seus leitores se queixavam de tratar-se de uma escrita difícil demais, filosófica demais, hermética demais. Esse descompasso foi repisado por jornalistas em entrevistas com a autora ao longo de toda a sua carreira.

No começo, Hilda parece frustrada e constrangida com a acusação. Com o passar do tempo, ela se torna apenas exasperada: começa a responder que não aguenta mais esta pergunta, que sabe ser brilhante, que sabe não ter escrito em grego, que tratou de questões humanas comuns, que se o leitor não a entende, a deficiência é do leitor. É o tipo de convicção obstinada sobre o próprio gênio e sobre o próprio ofício que sempre me deixou admirada.

Lendo sua obra, creio que posso conceder razão à ela. O livro mais amado por mim é um romance curto, intitulado “A obscena senhora D”. Em nota da organização editorial, Alcir Pécora afirma que não teve dúvidas sobre ser essa a publicação de largada entre suas obras. “Uma pancada justa, certeira, para apresentá-la sem meias medidas aos leitores potenciais, capazes dela”.

O livro conta a história de Hillé, uma mulher de sessenta anos que acaba de perder o marido devotado, testemunha fiel de sua perplexidade diante do mundo. Hillé sofre, e este sofrimento a conduz a um tipo de radicalidade: ela passa a se abrigar no vão da escada, a circular pela casa sem roupa, a assustar a vizinhança fazendo caretas na janela, a espantar o padre que a visita com profanações satânicas. Seu comportamento combativo, no entanto, abriga uma sentimentalidade ferida, saudosa das lembranças do amante perdido, angustiada com Deus, ou um porco-menino.

Alguns dos rapazes que se enamoraram de mim ao longo da vida tentaram enfrentar esse livro, 90 páginas em minha edição, por saberem ser importante para a minha formação leitora. Todos, sem exceção, desistiram. “Não entendi nada”, era o que diziam. A incompreensão era dialética: eu também não entendia o que havia de tão obscuro, em palavras que sempre me pareceram cristalinas.

Em uma das mais belas passagens do romance, lemos o seguinte: “o que é paixão? o que é sombra? eu mesmo te pergunto e eu mesmo te respondo: Hillé, paixão é grossa artéria, jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto do teu peito, e também teu deserto”.        

Em um título de livro paradigmático, a escritora proclama que “Tu não te moves de ti”. Poderia ser seu epitáfio. Hilda não correu de si mesma, pelo contrário. Todas as questões difíceis, o sexo, a relação com o divino, o poder, a mortalidade, a loucura, a solidão, a paixão, a fronteira entre humanidade e animalidade… Tudo foi alvo de seu escrutínio. Talvez Hilda tenha nos legado, com sua obra, boas lições de mergulho. Um mergulho profundo, para usar as palavras dela, em um susto que virou compreensão.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.