Bemdito

A paixão se conjuga em azul

Os azuis que permeiam as nossas vidas e as obras de Goethe, Bukowski, Maggie Nelson, Gertrude Stein e Van Gogh
POR Camille C. Branco
Ilustração: Blue Birds in flight

“Blue
Here is a shell for you
Inside you’ll hear a sigh
A foggy lullaby
There is your song from me”
(Joni Mitchell/Blue)

Goethe escreveu certa vez que o azul era uma cor viva, embora desprovida de alegria. Ainda assim, porque não somos capazes de escolher aquilo que amamos, Maggie Nelson se apaixonou pela cor azul e escreveu um livro inteiro sobre ela, chamado “Bluets”, ainda sem tradução no Brasil.

Trata-se de uma mistura singular de ensaio filosófico e anotação sentimental, composta por blocos de reflexão numerados, uma meditação fragmentária semelhante ao estilo de escrita de Wittgenstein, filósofo que a autora ama e admira, menos por suas contribuições sobre lógica e mais por sua inovação na filosofia da linguagem.

Wittgenstein também escreveu sobre cores quando estava no fim da vida, morrendo de câncer no estômago, sabendo que estava morrendo. Ele afirmou que talvez se voltasse para um tema mais sofisticado e menos banal que dor e cor se sua mente não estivesse em estado de radical decrepitude.

Nelson também sofre de uma cisão no momento em que se apaixona pelo azul. Ela acaba de ter o coração partido, perdeu o amor de um homem por quem, segundo afirma, trocaria todo o azul do mundo para estar ao lado. Nelson não tem medo do sofrimento amoroso e diz que talvez, no fundo, ao reunir detritos e tesouros em variados tons de azul, ela esteja articulando em palavras o desejo de esquecer o quanto amou alguém.

Em vez disso, ela eterniza este amor na forma de um demônio azul de estimação e fornece ao leitor um tipo particular de fogo visual ao mesmo tempo hedonista e sacro. O livro me faz lembrar Adília Lopes na afirmação de que o prazer é casto, o que é obsceno é o simulacro do prazer.

A autora descobre, ao longo de seu percurso de pesquisa, que uma espécie de pássaro reúne, durante muito tempo, objetos azuis diversos para atrair a fêmea e acasalar. Este pássaro é inclusive capaz de matar aves menores e levar seus pedaços para este estranho altar amoroso em azul.

É uma tarefa semelhante à qual a autora se dedica, reunindo informações matizadas de azul sobre escritores, pintores, filósofos, monges budistas e aquilo que expressaram sobre esta que é, segundo Gertrude Stein, uma cor machucada. Ao reunir este – em princípio incoerente – conjunto de cacos, costurá-los e tentar inocular neles um sentido de eternidade, Nelson tenta pôr em prática o conselho de Henry James, o de ser uma destas pessoas para quem nada está perdido. Paradoxalmente, quanto mais escreve, mais a autora se dá conta do quanto perdeu.

Acredito que Nelson, ao escrever sobre o azul, produziu um pequeno livrinho que capturou, em fotograma, o espírito da paixão. E paixão possui sentido ambivalente. Diz respeito ao prazer, ao êxtase, ao deslumbramento diante do mundo, ao fascínio, ao entusiasmo, ao fim do cinismo. Mas também diz respeito à dor, ao ferimento, a uma espécie de loucura. O suplício de Cristo é chamado de paixão.

Há, em inglês, esta linda expressão chamada “fall in love”, cair no amor em tradução literal. Não se escapa impune nem da paixão, nem do azul. É algo que Van Gogh representou em cores insuportavelmente vivas em sua Noite Estrelada, um quadro pintado quando o artista mirava o céu noturno da janela de um hospício, a mente em colapso. Há tanto azul neste céu que parece movimentar-se em tinta diante de nossos olhos.        

Eu mesma já tive minha experiência de paixão pelo azul. Ela me atingiu ao ler um poema de Bukowski – um poeta muito superior ao ficcionista – sobre ter um pássaro azul em seu coração, que queria sair, mas que ele tentava silenciar despejando whisky em cima, inalando fumaça de cigarros, não deixando ninguém ouvi-lo.

Eu eternizei este pássaro azul no ombro esquerdo, na forma de tatuagem. Um dia, um homem a quem amo deitou o rosto em meu peito e posicionou o ouvido para escutar as batidas do meu coração. Eu perguntei se ele conseguia também ouvir o barulho do bater das asas.

Simone Weil escreveu que o amor não é um consolo. Que o amor é luz. Maggie Nelson afirma que, quando começou a escrever “Bluets”, ela ainda estava viva. E que esperava conseguir escrever um livro não sobre saudade. Mas sobre luz. Uma luz azul. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.