Bemdito

“Pai, por que me abandonaste?”: paternidade na literatura

Como a literatura revela o que aprendemos e desaprendemos com a beleza e a sombra de sermos pais e filhos
POR Camille C. Branco

Como a literatura revela o que aprendemos e desaprendemos com a beleza e a sombra de sermos pais e filhos

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

Um dia, Kafka decidiu escrever uma longa carta para seu pai. O começo da correspondência dá o tom do teor angustiante que marcará todo o conteúdo do texto, hoje um conhecido documento da literatura ocidental: Kafka afirma sentir medo do pai e acrescenta que não consegue explicar as razões justamente por causa deste medo. O início da Carta ao Pai nos dá pistas sobre preocupações que atravessariam praticamente toda a obra do escritor – a vulnerabilidade humana diante de autoridades tirânicas, que tomam de assalto o corpo, a vida. Kafka parece frágil de primeira, quando lemos esta obra, tão pessoal. No entanto, não consigo deixar de admirar certa coragem não óbvia na admissão inicial da carta. Não acho fácil comunicar a uma pessoa “Eu sinto medo de você”.

Pessoalmente, considero que Pai é um material altamente inflamável. Freud ensina, na teoria psicanalítica, que o Pai é responsável por nos inserir na lei e na proibição. A função paterna, se bem executada, repassa a lição de que nosso primeiro e mais ardente objeto de desejo, o corpo materno, não pode ser possuído (há uma discussão acalorada e pouco conclusiva sobre se o Complexo de Édipo se dá da mesma forma para mulheres, mas isto seria assunto para outra coluna). Imbuídos desta lição, caminhamos pelo tempo convivendo com o desamparo deste desejo primordial insatisfeito, posição que nos ajuda a nos reconhecermos sujeitos faltosos, feitos de vazio. Ao longo da vida, cabe tentarmos, criativamente, fazer algo desta falta constitutiva e incontornável. É difícil não sentir um misto de ódio e amor pelo sujeito responsável por nos iniciar neste entendimento, tanto melancólico, quanto emancipador.

É esta ambivalência a respeito da paternidade que coloca em movimento a escrita dos seis volumes da série Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård. Diante da morte de seu pai em condições dramáticas – morte que dá título ao primeiro volume da série – Knausgård redige um dos mais belos inícios que já vi, em literatura. Diz o escritor: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para.”. Em investigação sobre o próprio coração, o escritor reflete, neste primeiro volume, sobre a juventude perdida, sobre as incompreensões e incomunicabilidades que caracterizaram sua relação com o pai, sobre o processo de escrever e, talvez o mais interessante, sobre a própria paternidade. Knausgård revela ao leitor o ressentimento que o assalta pela invasão de privacidade e tempo de escrita tomado de si diante da presença dos filhos pequenos. Com franqueza, ele confessa que seus olhos se enchem de lágrimas diante de uma bela pintura, mas não diante de seus filhos. E que isto talvez signifique que as crianças não são o suficiente para dar sentido a sua vida.

Em um movimento invertido, o brasileiro Tiago Ferro decidiu escrever sobre a ausência de sentido gerada pela perda de sua filha, no brutal O pai da menina morta. Ainda criança, a menina morre bruscamente, acometida por um mal súbito. A paternidade passa a ser uma experiência de ausência. O que é um pai, sem sua filha? Tiago pensa a morte da própria filha como um parto invertido e sem berro. Pensa em suicídio, tem pesadelos, tem outra filha para continuar criando. Vê a esposa acariciando involuntariamente o próprio útero vazio. Nenhum cineasta seria capaz de dar forma àquela dor, ele escreve. Toda a sua identidade foi dissolvida. Agora ele é apenas O Pai da Menina Morta. “Do que não vai dar para fazer neste livro: Trazer a Minha Filha de volta à vida.”, ele também escreve. O livro é insuportável, porque a vida de Tiago também se tornou insuportável. Um Pai em ruínas é o que ele nos entrega.

Talvez um dos mais pungentes e conhecidos retratos sobre paternidade esteja mesmo contido na Bíblia. Sei que o principal do texto bíblico para os cristãos provavelmente reside em seu valor cosmológico, mas sempre me impressionou a força poética contida em algumas passagens. No Novo Testamento, um Cristo crucificado, supliciado, injustiçado, eleva o rosto para o céu e profere uma das frases mais agudas que existem sobre desproteção: “Pai, por que me abandonaste?”. Pregado na cruz, Cristo precisa se confrontar não somente com a morte, mas com o silêncio de Deus. Silêncio semelhante ao enfrentado por Paul Auster, que decide escrever sobre seu pai depois que ele morre, em A invenção da solidão. Auster afirma que buscava pelo pai enquanto ele estava vivo e que, nesse sentido, a morte em nada alterou sua busca, exceto pelo fato de que o tempo havia se esgotado. De novo, o silêncio.

Meu próprio pai, muito menos silencioso que Deus (e não possuidor de poderes tão radicais) certa vez me contou que, quando me pegou no colo pela primeira vez, ele com 23 anos, sentiu muito medo. Pensou: “eu sou um moleque ferrado, e se não tiver nada para oferecer para a minha filha?”. E, ao longo dos meus 27 anos subsequentes, ele tentou me oferecer várias coisas, assim como faltaram tantas outras. Entre as que me deu, estão os filmes, histórias sobre pessoas que se sentiam quebradas e tentaram, aos tropeços, fazer algo da própria devastação. Porque um dia eu também poderia achar que não havia saída para mim e teria como lembrar que há.

Um destes filmes foi o paradigmático Perfume de mulher, com um irrepreensível Al Pacino interpretando um coronel cego, suicida e misantropo que descobre, dos destroços de sua vida, um papel de Pai que nunca desejou, mas que aprendeu a abraçar com lentidão, incerteza, sofrimento e, por fim, amor. Novamente, a psicanálise ajuda: Lacan defende que a Paternidade é uma função – e como tal, nada tem a ver com um laço biológico, mas com a sustentação de um desejo, que é sempre precária, sempre instável. Poucas coisas são tão quebradiças, tão feitas de buracos, quanto um Pai. E, apesar disto, desta neblina, aprendemos e desaprendemos o amor, com sua beleza e sua sombra. Pai é uma busca que não cessa. E que não dá resposta sobre nada. Ainda assim, desse lugar delicado, algo nasce. Nasce um Pai. E nasce um Filho.

Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.