Bemdito

Copan, microcosmo da política brasileira #2

A disputa polarizada de narrativas que aproxima o síndico do Copan e o presidente do Brasil
POR Rodrigo Iacovini
Foto: Vitor Nisida

A disputa polarizada de narrativas que aproxima o síndico do Copan e o presidente do Brasil

Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br

Errei na última coluna. O Copan talvez não tenha 5.000 moradores, como havia afirmado. Nem sempre a complexidade de uma questão cabe nas linhas e caracteres que nos colocamos como meta. Mas esse é um número contestado, pois há diferentes formas e fontes de informação (IBGE, administração do Copan, etc.). Contei, de maneira simplista, que o Copan tem 5 mil moradores. E optei por deletar o trecho que havia escrito antes: “entre 3 mil e 5 mil pessoas – as estimativas flutuam muito, sendo parte do mito que envolve o edifício”.

Porém, quando compartilhei o texto no grupo de Facebook que havia mencionado, o Vivência Copan, fui alertado por uma moradora do erro. Mais do que o número exato de moradores do Copan – o que nem o IBGE, nem o síndico, nem talvez Deus conseguissem -, o importante é notar a escala de grandeza do edifício, situada na casa dos milhares de residentes. Por isso, coloquei simplesmente 5 mil, sem qualquer crítica a esse valor.

Agora percebo, no entanto, que era crucial ter mantido a frase original, com a ponderação entre 3 mil e 5 mil moradores – não somente pela questão da precisão numérica em si, mas pelo fato de que a população do edifício faz parte de uma disputa de narrativas atualmente em curso aqui, em que grupos distintos recorrem à disputa numérica também como forma de embasar diferentes visões e projetos políticos para o edifício.

Em outubro de 2020, por exemplo, duas matérias da Folha de São Paulo representaram o cotidiano do Edifício Copan e de sua administração de modos distintos. Na primeira, são apontadas falhas no combate à pandemia, com depoimentos fortemente críticos de moradores ao síndico. Acusado de omissão em adotar as medidas de higiene recomendadas, ele se recusou a responder à reportagem e, assim, sequer foi nomeado por ela. Já na matéria seguinte, o “seu Affonso” – como é conhecido pelos moradores – é retratado como o megassíndico competente que procura apaziguar conflitos, posando para a foto de máscara, com seus cabelos brancos e seu distinto cardigan vermelho.

Qual versão está errada? Arrisco dizer que nenhuma delas. São narrativas em disputa, representando grupos e projetos políticos distintos.

Os dois textos refletem lados diferentes da mesma moeda, abordando a questão a partir de interpretações, pontos de vista. Os jornalistas fizeram o melhor trabalho que poderiam em ambos: apuraram, verificaram eles mesmos algumas das alegações, ouviram diferentes fontes, ofereceram a oportunidade de defesa. Apenas quem acompanha diariamente as dinâmicas sociais e políticas do Copan poderia enxergar: tratam-se de matérias com distintos grupos de moradores, que, em menor escala, reproduzem no edifício a polarização política vivida no Brasil e exacerbada pelas redes sociais.

Diferentemente do restante do país, esses moradores não se encontram divididos entre “bolsominions” e “esquerdistas”. Há pessoas com perfil à esquerda e à direita em ambos os polos da disputa. O parâmetro que polariza esse conflito, no entanto, é similar ao nacional: a adesão irrestrita ou a recusa ao projeto político e social representado e imposto pelo gestor. No caso do Copan, estamos falando do síndico “seu Affonso”; no do Brasil, Bolsonaro.

É no já famoso grupo Vivência Copan que se pode observar mais fortemente essa polarização. Nos corredores e nos cafés da galeria, muito se discute sobre as posturas do síndico; mas é naquela rede social que as opiniões se tornam mais virulentas e as discussões, acaloradas. Nas postagens, fica nítida a existência de uma claque do síndico, que sempre sai em sua defesa diante de qualquer espécie de crítica à gestão. O séquito é composto, em geral, de proprietários que vivem há muitos anos no Copan e que louvam o síndico pela “limpeza” efetuada no prédio.

Não se trata da limpeza física do condomínio, mas se refere ao processo de retirada de pessoas consideradas “indesejáveis” pela boa sociedade paulistana. Um verdadeiro processo de higienização social. “Você não sabe o que era isso aqui antes do seu Affonso” é a frase mais repetida por estes moradores, satisfeitos por ingenuamente acreditarem não mais conviver com a prostituição e o tráfico de drogas nos seus corredores. Ah, se eles soubessem o que eu sei…

Têm razão, no entanto, quando ressaltam o mérito do síndico na manutenção física do Copan. Ao contrário dos depoimentos da primeira matéria, presencio a limpeza de cada elevador várias vezes ao longo de um mesmo dia pelos funcionários, sempre devidamente mascarados e fornecendo orientações corretamente. São mais de 1.160 unidades e 120 mil metros quadrados de área construída e cotidianamente cuidada.

A exemplo do senso comum, que há décadas domina a discussão política nacional, falta a compreensão de que uma boa administração de condomínio não se esgota na competência técnica. Ou na faxina do edifício. Além do zelo pelo ambiente físico, uma boa gestão deve compreender as demandas colocadas pelos moradores hoje, e não pelas necessidades dos anos 1990.

O que esperamos do Copan é apenas o que reivindicamos para o Brasil: uma gestão eficiente, mas também ética, politicamente aberta e democrática. Com uma cultura democrática, ganha o edifício, mas também ganhará o país. E, como contarei na próxima semana, isso passa pela relação entre post-its e portas e o sentimento de pertencimento ao espaço urbano.

Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.