Bemdito

Como nos tornamos imbecis

Dancinhas, selfies e fadas sensatas. A imbecilização do brasileiro e a conivência da mídia em tempos de convulsão social
POR Jáder Santana
Ilustração de cactos da botânica Mary Emily Eaton

Dancinhas, selfies e fadas sensatas. A imbecilização do brasileiro e a conivência da mídia em tempos de convulsão social

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

Não sei se como estratégia para sobreviver aos dias difíceis ou se é algo definitivamente entranhado aos parâmetros de comportamento do homem contemporâneo, mas a cada dia que passa encontro mais evidências de que nos tornamos imbecis e gostamos disso. Por imbecis quero dizer infantilizados, ingênuos, fúteis. Trouxas. No nível político, a imbecilidade se traduz em ignorância, inabilidade e inércia.  

Na última semana, cruzei pelas redes sociais com mais de um vídeo de um novo programa da Rede Globo, o Casa Kalimann, conduzido por uma ex-BBB que, antes do programa, era famosa por ser famosa. Influenciadora digital. Criadora de conteúdo. Os dois termos usados para esclarecer a profissão de famosos que são simplesmente famosos, como se tivessem nascido sob uma lua especial que lhes garantisse audiência e interações – mesmo que por trás dessa audiência esteja um mal camuflado sistema de compra de likes e seguidores, como mostra o documentário Fake Famous, da HBO. 

No Twitter, o abrigo por excelência da imbecilidade dissimulada – já que no Instagram ela se mostra sem disfarces -, o nome de Rafa Kalimann vai aos tópicos mais discutidos a cada nova edição do programa. Seguidores e detratores se engolem em argumentos sustentados por memes e frases prontas de lacração. Em sua conta pessoal, a apresentadora rebate os haters e se gaba do sucesso da nova empreitada, protegida pelo exército de amigas com mais de 1M de seguidores. 

Houve tempos em que um programa imbecil era simplesmente um programa imbecil. O Domingo Legal, o Em Nome do Amor, o Casos de Família, o Caldeirão do Huck, o SuperPop. A imbecilidade de seus apresentadores e do conteúdo que ofereciam era assumida, desejada, provocada. Ligávamos a TV e escolhíamos o canal sedentos por aquelas doses cavalares de tolice. Se alguém gastava todo o domingo zapeando entre programas de auditório, o dia terminava com a sensação meio amarga de derrota. Sabíamos que estávamos sendo imbecis, apontávamos a imbecilidade do outro e tentávamos justificar a nossa. “Foi o tédio”. “Não tinha nada melhor pra fazer”. 

Hoje, cultivamos a imbecilidade com orgulho. Defendemos com sangue o programa imbecil da emissora de TV mais poderosa do país. Um país que convulsiona enquanto Rafa Kalimann imita vozinha de bebê e cozinha de cabeça pra baixo. Que tal celebrar os 450 mil mortos com um programa colorido e uma apresentadora de postura infantilizada? Que tal fingir que não tem nada acontecendo?

Talvez seja má vontade de minha parte, mas vejo horrorizado que tudo o que a Globo se dispõe a nos oferecer de novidade no meio da maior crise política e sanitária que o Brasil já viveu seja um programa frívolo e oco que reproduz a estética e a ética do que há de pior nas redes sociais. Não me convence a desculpa de que precisamos, mais do que nunca, de alívio cômico e alienação. Não há do que se rir. Se alienar é, em última instância, abrir mais uma cova rasa. 

Não encontrei informações sobre o orçamento envolvido na realização do programa, mas conhecendo, por experiência profissional, os bastidores de uma TV, imagino cifras astronômicas e um cachê polpudo para a apresentadora. Por que a Globo não escolheu a educação à alienação? O que houve com a ideia de ensinar brincando ou brincar ensinando? Por que não experimentar e estabelecer novos produtos de comunicação que reforcem, para as novas gerações, a importância da informação, o perigo do revisionismo, a relevância da mobilização? São perguntas retóricas. Sabemos o que é e quem faz a Globo, mesmo que sua nova pátina progressista e independente consiga distrair os mais incautos. 

Rafa Kalimann não tem culpa do fiasco de seu programa. Ela integra um sistema doentio que desdenha da inteligência e exalta a imagem. É vítima e algoz de sua (nossa) própria imbecilidade. Um passeio de cinco minutos pelas redes sociais revela quem é o brasileiro de 2021: somos cactos, somos sariette, vigorentos, somos fadas sensatas, somos as fofuras nos stories, as princesas da Disney, os gatinhos, somos a dancinha do piseiro, os filtros de harmonização, os desafios de TikTok, as viagens resumidas em selfies, somos os stories fitness, o pratinho vegano, a yoga no tapetinho. Vivemos todos em uma grande Casa Kalimann chamada Brasil.

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. É mestrando em Estudos da Tradução pela UFC e curador da Festa Literária do Ceará (Flac). Está no Instragam.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.