Bemdito

Pode uma mulher ser de fato livre?

Uma reflexão sobre os percalços da liberdade feminina moderna - a começar, pelo corpo da mulher
POR Paula Brandão

2021. O time de handebol feminino da Noruega foi multado em 1,5 mil euros porque as jovens resolveram usar shorts no lugar de biquínis, alegando que a roupa era imprópria. Um dos maiores engodos da sociedade contemporânea é nos assumirmos sujeitos livres.

A liberdade serviu de esteio para fundamentar os direitos humanos desde 1789, com a Revolução Francesa, e a associação aos princípios da igualdade e fraternidade. Essas são as três grandes epifanias da modernidade. Semana passada, Maria Homem fez um vídeo tensionando os limites de ser livre e causou estardalhaço nas mídias. Disse ela:

“Nasce um filho e, na certidão de nascimento, você não quer dizer qual é o corpo que ele tem. Se é macho ou fêmea, porque aí então, ele é livre para construir socialmente, psiquicamente, historicamente, o que ele quiser construir como o seu gênero. Não somos tão livres assim, infelizmente. Mas talvez não sejamos tão presos!”

Pensar os limites dessa liberdade, no seio de um capitalismo liberal, nos faz recorrer à pergunta: pode uma mulher ser livre? Em um documentário bonito, Elogio à liberdade, que narra a vida de Rosiska Darcy, é revelada a sua decisão de casar com seu grande amor, mas de não ter filhos.

Para ela, que já se aprofundava nos debates sobre os direitos das mulheres, compreendendo profundamente a opressão que viveria ocupando o papel de esposa e mãe, era inegociável o direito dela em escolher não ter filhos. Chegar a esse nível de escolha e de liberdade – ela não esconde – tem a ver com seu lugar privilegiado socialmente.

Então, ela sempre defendeu e entendeu a liberdade do ponto de vista do direito de decidir sobre si e seu corpo. Rosiska considera ser um absurdo uma jovem, ainda hoje no Brasil – ao contrário do nosso vizinho Argentina – não ter uma política de apoio à interrupção da gravidez.

Espere! Você não precisa concordar e talvez nunca tenha pensado nisso para si, mas quantas garotas de 13 anos ou menos estão grávidas, neste momento, por abusos sexuais ou experiências com outros adolescentes, e não têm sequer assistência médica? Em relato de uma delas, recentemente, ela dizia que a gravidez foi um erro ou um esquecimento de preservativo, mas que pesará em sua vida para sempre.

Quando jovens engravidam muito cedo, nas periferias, a ausência de uma rede de apoio socioassistencial faz com que elas abandonem a escola e engrossem as filas dos jovens nem-nem, que nem estudam e nem trabalham. Vejam, é possível falarmos de sujeitos livres nessas condições? A pandemia revelou esse fosso, ao mostrar que, no momento de quarentena, milhares delas enfrentavam ônibus lotados para trabalhar, sem escolha.

Para as mulheres, mesmo as pertencentes às classes mais abastadas, a liberdade aconteceu muito mais tarde do que para os homens. Hannah Arendt, em A condição Humana, se volta aos filósofos gregos e revela que a esfera da liberdade era vivida apenas na polis. Como esse espaço era, essencialmente, dos homens cidadãos, às mulheres e aos escravos sobrou a esfera privada, que os colocava numa posição de não liberdade. “Dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que podia deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais.”

Liberdade feminina moderna

Na era contemporânea, a liberdade feminina ainda sofre percalços para ser alcançada. No Brasil, essa liberdade parece coincidir com a independência financeira, vivida mais tardiamente. Das mãos dos pais para a dos maridos, gozam da sua liberdade apenas na vida adulta. Como sabem o quanto custou para tê-la, não abrem mão dela por nada no mundo.

Os relacionamentos que as seguravam, as prendiam nos afazeres domésticos e no trabalho em dupla jornada, são deixados de lado quando atingem a maturidade. E hoje, com seus filhos saindo de casa, casamentos desfeitos ou novos relacionamentos, elas comemoram a retomada de suas vidas independentes e gozam os seus desejos mais íntimos. Elas simplesmente podem fazer tudo o que quiserem e isso para elas não tem preço.

Não seremos livres como mulheres, numa sociedade capitalista que nos torna cidadãs, apenas pela via do consumo que reifica nossos corpos. Onde há uma superexposição de umas, e exclusão daquelas fora dos padrões; em que as mulheres mais velhas não devem namorar com homens mais jovens, enquanto os coroas andam por aí, com suas namoradas adolescentes. Dia desses, uma bela amiga minha tirou uma foto de short curto, aos seus 45 anos, e me disse que foi criticada por outra, afirmando que ela não tinha mais idade para esse tipo de roupa. É disso que estou falando.

O corpo das mulheres é aquele em que todos podem opinar, valorar, intervir, violentar. Está aberto para toda sorte de interdição. Mas tenho esperança de que as nossas conversas semanais, as interlocuções com minhas alunas e com pessoas diversas possam nos tornar sujeitos mais livres. Somos seres incoerentes, portanto, erraremos ainda muito, até começarmos a acertar na convivência com o(a) outro(a). O importante é iniciarmos já!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).