Bemdito

A urgência do tratamento político da solidão brasileira

Pode ser um erro imaginar que, ao fim da pandemia, a maior parte das pessoas encontrará rapidamente o caminho do bem-estar
POR Desirée Cavalcante

O lugar fundamental dos afetos na construção dos dias foi ressaltado durante a pandemia. Logo no princípio, quando a radicalidade dos efeitos do isolamento surpreendeu a maioria das pessoas, pensava-se em meios de amenizar os impactos do distanciamento social.

A arte e a exploração de espaços digitais foram utilizadas como veículos de busca de conforto individual. Ao mesmo tempo, a tristeza, o cansaço e a solidão, que usualmente pareciam pertencer à particularidade emocional e à rotina de cada um, passaram a ser explicitamente compartilhados. 

O mal-estar deixou de ser explicado apenas pelas experiências singulares e se tornou fonte de reconhecimento no relato de outras pessoas. Tamanha é a identificação com a exaustão que se torna difícil ignorar que não se está vivenciando algo estritamente privado. 

A solidão, a tristeza e a ansiedade se tornaram questões políticas na medida em que sinalizaram que a profundidade da fragmentação e da individualidade, que caracteriza as sociedades contemporâneas, tem comprometido os laços sociais e o bem-estar coletivo. Em grande medida, a conexão com outras pessoas, em vez de produzir satisfação e crescimento, passou a ser fonte de aversão, cansaço e estresse.

Quando o Japão criou um Ministério para tratar da “epidemia de solidão” no país, revelada nas altíssimas taxas de suicídio, parecia que o fato era atado à pandemia ou às peculiaridades sociais e culturais. Entretanto, esta não foi a primeira vez que um Estado precisou tratar como política pública o mal-estar emocional de seus cidadãos. O Reino Unido, em 2018, instalou um Ministério da Solidão, por compreender que o tema é um dos maiores desafios de saúde pública da contemporaneidade.

Na mesma linha, o Global Risk Report de 2019, documento do Fórum Econômico Mundial, considerou que, para um número impressionante de pessoas, este é “um mundo cada vez mais ansioso, infeliz e solitário” e apontou que, em 2010, foram gastos cerca de US$ 2,5 trilhões em custos indiretos de transtornos ou sofrimentos mentais, como queda de produtividade e aposentadoria precoce, superando os impactos diretos com custeio de diagnósticos e tratamentos. 

A solidão é política

As medidas de combate à solidão possuem relação direta com políticas de saúde, mas não se limitam a elas. Na verdade, a racionalidade política precisa se manifestar com uma complexidade compatível com o desafio imposto pelas emoções compartilhadas entre os cidadãos. O combate público à solidão exige mudanças estruturais, inclusive no ambiente laboral e produtivo, tanto quanto o reforço à sutileza do convívio humano, perpassando pela ênfase no valor dos vínculos sociais e da manutenção da solidariedade.  

O lado brasileiro dessa realidade é atrelado às crises que se acumulam e se retroalimentam e à insegurança política, institucional, econômica, ambiental, sanitária e social. A fórmula de aumento da violência, pobreza e solidão, o caldo cozido e temperado diariamente no Brasil, que o colocou na posição de país mais solitário durante a pandemia entre 28 países, segundo uma pesquisa do Instituto IPSOS, repercute diretamente no cenário político-eleitoral e nas ameaças democráticas que se tornaram rotina.

O cada vez mais contestado estereótipo do brasileiro cordial, amigável e gregário não tem sido confirmado pelas experiências recentes e é insuficiente para explicar a gravidade do desalento social. Decerto, a tragédia sanitária brasileira contribui para a formação de um cenário de desencanto e medo, mas pode ser um erro imaginar que, ao fim da pandemia, a maior parte das pessoas encontrará rapidamente o caminho da felicidade e do bem-estar social. 

É preciso desconstruir os clichês e as generalizações sobre a sociedade brasileira, suas dores, rompimentos e violências, para que se possa tratar a solidão como uma questão pública. Esse tema é urgente e não pode permanecer centralizado como uma experiência particular ou ocasional. 

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.