Bemdito

Não há muito o que celebrar neste Dia Mundial do Habitat

A lentidão do estado brasileiro na efetivação do direito à moradia da população vulnerabilizada
POR Rodrigo Iacovini
(Foto: Thiago Japyassu)

Frequentemente uso, como brincadeira, a expressão “antes tarde do que mais tarde” em lugar de “antes tarde do que nunca”. No que tange à pandemia, “mais tarde” significou necessariamente mais mortes. A omissão e a morosidade do estado brasileiro — principalmente em nível federal, mas também em alguns casos nas esferas subnacionais — foram mortais: desde o atraso na compra das vacinas até a adoção efetiva de medidas preventivas, como aquelas que possibilitavam o devido isolamento da população no auge das taxas de contágio, a exemplo da suspensão de despejos e remoções.

Mais de um ano e meio depois da chegada do coronavírus ao Brasil, finalmente o Congresso Nacional conseguiu aprovar em definitivo a suspensão de despejos e remoções. A medida vinha sendo reivindicada por movimentos e organizações da sociedade civil engajados na Campanha Nacional Despejo Zero, tendo sido apresentada como Projeto de Lei 827/2020 pela deputada federal Natália Bonavides (PT-RN) em março do ano passado.

Infelizmente, a baixa prioridade conferida ao tema pelo Congresso Nacional — como é usual em pautas que afetam interesses econômicos, principalmente aqueles relacionados à propriedade da terra — significou uma demora injustificada, tendo o PL sido aprovado somente em julho deste ano. Se em agosto de 2020 a Campanha Despejo Zero havia identificado mais de 6 mil famílias despejadas desde o início da pandemia, um ano depois o número mais que triplicou. Segundo dados sistematizados por suas organizações até agosto de 2021, já foram removidas aproximadamente 20 mil famílias, colocando assim mais de 80.000 pessoas em alto risco de exposição ao coronavírus. 

Como já havia comentado anteriormente aqui no Bemdito, a demora do Congresso em aprovar o PL foi agravada pela irresponsabilidade e desumanidade do presidente da república, Jair Bolsonaro, ao vetá-lo integralmente no início de agosto. O melhor do Brasil, no entanto, é o brasileiro: a sociedade civil reforçou sua mobilização e pressionou parlamentares para que derrubassem o veto presidencial, obtendo assim uma vitória retumbante na última segunda-feira, 27. 

Muitas foram as derrotas ao longo do caminho, como a aplicação da suspensão apenas ao meio urbano, deixando desprotegidas famílias situadas em zonas rurais. Ana Moraes, da Coordenação Nacional do MST, destaca o impacto dessa lacuna em seu artigo publicado ontem no especial Cidades do Amanhã, do Le Monde Diplomatique Brasil. Não se trata, infelizmente, de um lapso dos legisladores, mas de uma medida cuidadosamente articulada pela bancada ruralista no Congresso. Seus interesses se sobrepuseram ao fato de que as famílias pobres brasileiras que hoje vivem no campo também sofrem os efeitos nefastos da crise econômica e da pandemia.

Esse é apenas mais um exemplo de como a centralidade da terra e da moradia no sistema capitalista ocasiona uma série de disputas e mesmo de práticas violentas. Do Congresso Nacional ao cotidiano das cidades brasileiras, a despossessão atinge fortemente os grupos historicamente vulnerabilizados — pobres, negros, mulheres, moradores de periferias — através de diferentes estratégias políticas, econômicas e sociais. Dentre estas, a violência tem sido um mecanismo largamente utilizado, como se pode ver em Fortaleza. 

A mandata Nossa Cara, coletivo de três mulheres eleitas para a Câmara dos Vereadores no último pleito municipal, tem acompanhado de perto a situação e, por isso, esteve presente no momento em que se buscava remover ilegalmente 200 famílias da ocupação Fazendinha, no Cambeba. Sem mandado de reintegração de posse, policiais militares à paisana violavam direitos e descumpriam com a conduta ética imposta a profissionais de segurança pública. Ao se tornarem testemunhas do crime cometido pelos agentes, as co-vereadoras precisaram ser incluídas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, do Governo do Estado do Ceará, tendo em vista possíveis retaliações que poderiam sofrer simplesmente pelo exercício do seu papel institucional de fiscalização do cumprimento da lei e de garantia da efetivação do direito à moradia.

Se ontem, 4 de outubro, foi celebrado pela ONU e por organizações do mundo inteiro o Dia Mundial do Habitat, pergunto: temos o que celebrar diante das mortes ocasionadas pela lentidão do estado brasileiro em assegurar medidas protetivas à moradia da população na pandemia, diante da omissão em relação à situação das famílias que vivem no campo e da violência sofrida cotidianamente por militantes que reivindicam a efetivação do direito à moradia adequada?

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.