Bemdito

Quanto vale um dia? Quanto vale o seu dia?

Três casos de encarceramento por falsa acusação ou reconhecimento mostram o quanto o sistema judiciário brasileiro continua extremamente falho
POR Alex Mourão

Três casos de encarceramento por falsa acusação ou reconhecimento mostram o quanto o sistema judiciário brasileiro continua extremamente falho

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

Lembra-se do dia em que beijou o seu amor pela primeira vez? Do dia da formatura? Do dia daquela alegria inesperada no meio da tarde? Lembra os dias de alegrias simples? Se você não tivesse esse dia, qual o seu prejuízo? Quanto vale o seu dia? Alegre ou triste.

Agora imagina 16 anos perdidos. Isso mesmo, 16 anos perdidos em um ambiente violento por natureza, lúgubre e feio. Como já falamos neste espaço, na coluna de 18 de março, o cárcere é o lugar dos esquecidos, onde os direitos são negados e as mazelas distribuídas com uma sanha vingativa. É a própria negação do estado de direito. O professor Luís Carlos Valois costuma dizer que, de tanto se desrespeitar as leis, o cárcere acaba sendo naturalmente ilegal. Então, para punir alguém o estado comete a ilegalidade de trancafiar alguém nessas condições. Imagina que essa pessoa é inocente.

Consegue imaginar 16 anos trancado, sem condenação? Sem processo?

Na semana passada, um homem foi posto em liberdade, após 16 anos preso no sistema prisional cearense, esquecido. Ao que consta nas notícias sobre o caso, além de lhe faltar a condenação, em qualquer grau, faltava-lhe até mesmo um processo que justificasse a sua clausura no presídio. O homem foi preso em 2005, acusado por policiais de ter cometido um crime e, desde então, assim permaneceu, sem qualquer audiência e sem qualquer representação, invisível a todos os olhos que o miravam.

O caso, que aconteceu no Cariri cearense, é daquele que chama a atenção pelo tamanho do absurdo. É tão grande a loucura de manter alguém preso, mesmo que apenas um dia, que parece inacreditável então 16 anos.

Além da prisão que não tinha nem processo, pessoas cumprem pena, com processos e condenações fundadas, apenas no reconhecimento da vítima. No Rio Grande do Sul, uma pessoa foi condenada por estupro e ficou presa por 10 anos, mesmo com o exame de DNA atestando que o material genético colhido não era seu, e sim de outro. 10 anos. Preso.

Não é necessariamente uma falsa acusação, mas falsas memórias. Porém, o problema persiste: pessoas inocentes presas e demorados processos para devolver-lhes a liberdade.

O caso da dançarina Bárbara Querino é outro emblemático. Bárbara foi ilegalmente fotografada por policiais e depois a sua foto passou a ser usada como identificação de membros de uma quadrilha de assaltantes na cidade de São Paulo. Foi presa e condenada por roubo. A prova usada foi o reconhecimento pela fatídica foto. Bárbara não estava na cidade de São Paulo no dia do roubo. A defesa apresentou laudo pericial que atestava postagens em redes sociais e que ela estava no Guarujá, além de testemunhas. Ainda assim, ela foi condenada a cinco anos e quatro meses de prisão.

E os casos não param. Em 2019, aqui no Ceará, de onde escrevo este texto, um homem foi inocentado após passar cinco anos preso, condenado por estupro. Entre as provas, as imagens das câmeras apontavam que o verdadeiro culpado tinha mais de 1,89m e o inocente media 1,59m. Nesse caso, atuou na defesa, além da Defensoria Pública do Ceará, o Innocence Project Brasil.

Em 2020, o mesmo Innocence Project Brasil publicou um relatório sobre Prova de Reconhecimento e erro judiciário, apontando os graves problemas no reconhecimento de pessoas no sistema de justiça criminal brasileiro, como o reconhecimento feito de maneira informal e o incorreto manejo do artigo 226, do Código de Processo Penal. Como efeito desses erros, as pessoas são presas.

Se o encarceramento de alguém por conta de um reconhecimento falso é algo trágico, saber que esse dado tem um recorte de raça é assustador. Em levantamento feito pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE), 81% das pessoas presas indevidamente por reconhecimento fotográfico são negras. Assim, a conclusão inevitável é a do verso da canção imortalizada na voz de Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.