Bemdito

Cabra marcado para morrer

Violência rural que vitimou líderes de movimentos, como João Pedro Teixeira, em 1962, persiste
POR Alex Mourão

No final do dia 2 de abril de 1962, João Pedro Teixeira foi assassinado a tiros de fuzil. Caiu no chão de terra, ao lado dos livros que levava para os seus filhos. João Pedro Teixeira era líder dos trabalhadores rurais e foi fundador da primeira Liga Camponesa que funcionou no estado da Paraíba. Na cidade de Sapé, ele liderava o movimento. A notícia de sua morte correu o interior da Paraíba e de Pernambuco, agitando os movimentos dos trabalhadores rurais que passaram a exigir, também, a punição dos assassinos. 

Dois policiais e um vaqueiro foram acusados de serem os executores da morte. Depois, inocentados. O mandante, segundo as notícias da época, era um importante político que rapidamente fez as engrenagens do poder girarem para que assumisse uma cadeira na Assembleia Legislativa da Paraíba, ganhando assim o prêmio da impunidade.

Esse acontecimento chamou a atenção do cineasta Eduardo Coutinho, que resolveu filmar a história de João Pedro Teixeira. O filme era encenado pelos próprios agricultores, no caso, da região de Galileia, em Pernambuco, que também passava por problemas parecidos aos de Sapé, lugar da morte.

Em 1964, Coutinho começou as filmagens. Em abril do mesmo ano, parou. O filme, Cabra marcado para morrer, contando a história de João Pedro Teixeira e sua luta no campo, foi interrompido pelo golpe militar. A polícia invadiu Galileia, onde aconteciam as filmagens e prendeu vários agricultores/atores. Outros fugiram. Coutinho e parte da equipe também conseguiram fugir.

O filme, uma história baseada na vida de Teixeira, ficou parado, guardado, por 17 anos. Em 1981, o diretor retoma, mas agora para documentar o que aconteceu com as filmagens e com os envolvidos. Agora, ele vai escutar a voz de Elizabeth, a viúva de João Pedro, e a dos outros líderes e atores. O filme que não aconteceu é resgatado, agora como documentário e, depois de pronto, ganha o mundo. Narra a história dos camponeses, a história do filme, a história do campo no Brasil, marcado pela violência e pela luta por terra. A terra significa mais que chão, é poder político. Poder conquistado com violência.

Nos dezessete anos que separam as filmagens da primeira versão, para as filmagens do documentário, uma ditadura se instalou no Brasil e já estava em seus estertores. Mas as mazelas no campo continuavam. Em 1981, quando foram retomadas as filmagens, em 1984, quando foi lançado e, em 1985, quando ganhou o mundo, o filme mostrou um campo que continuava do mesmo jeito, marcado pela violência.

Cabra Marcado para Morrer é reconhecido hoje como um clássico do cinema. Tanto que está na lista dos 100 melhores filmes brasileiros, elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema. E hoje, como em 1962, a violência no campo continua: de um lado, os trabalhadores e do outro, os latifundiários, grileiros e toda sorte de atores lutando pelo chão e pelo poder que vem com ele.

Violência rural persiste

Segundo dados do Atlas da Violência no Campo, elaborado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), a violência no campo é decorrente de lutas históricas e institucionais. Em suas conclusões, o trabalho apontou que as lutas no campo estão intimamente ligadas às pressões exploratórias sobre os recursos naturais e aos conflitos com povos originários, com comunidades tradicionais e com pequenos agricultores e trabalhadores rurais submetidos historicamente a condições de exploração. Ainda, na mesma conclusão, foi validada a hipótese de que a taxa de homicídio no campo é maior nos municípios rurais com maior vulnerabilidade econômica.

Os relatórios da Pastoral da Terra sobre violência no campo também têm identificado características na violência rural.

Desde 2018, os atentados com morte são direcionados a líderes de movimentos, como aconteceu com João Pedro Teixeira, em 1962.

A maior parte dessas mortes ocorre em relação às pessoas que já têm a sua terra e são forçadas a sair. A luta pela terra acaba ganhando contornos de luta de conquista, com latifundiários e exploradores tomando as terras das populações originárias e dos pequenos agricultores.

Nessa luta sangrenta, invisibilizada pela distância entre o campo e as grandes cidades, o filme de Coutinho continua atual, uma característica que marca os clássicos, mostrando os conflitos e a luta pela terra, além da impunidade dos poderosos. E os cabras, muitos e muitas, continuam marcados e marcadas para morrer e continuar morrendo. E morrendo.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.