Bemdito

Para a menina sem história

Deus, tempo e os efeitos dos buracos “mal-ditos” em nosso corpo são tema de romance da escritora Renata Belmonte
POR Ana Carolina Valim

“Pai nosso que estáis no céu”. Assim gostaria de começar este texto para tentar retratar em poucas palavras uma grande narrativa: o romance Mundos de uma noite só, da escritora Renata Belmonte. Como cenário, temos uma casa com paredes estriadas em que nelas repousa, acima do olhar, Jesus Cristo pregado na cruz: única testemunha de uma menina sem história. 

Jesus é o único personagem a qual essa criança pode endereçar algum pedido de alento do seu sofrer nessa casa de paredes lascadas e contornos embaçados. Nesta casa, onde os corpos femininos se misturam e se entrelaçam, existe uma menina tentando se desvencilhar do peso dos corpos de suas duas mães. A menina possui um pai ausente que é retratado como uma figura austera, distante, inalcançável, feroz assim como aquele que resta sobre a cruz acima de nosso olhar. Jesus, nosso pai, pai dessa menina, distante de todos nós. 

O pai é narrado como uma ficção pela mãe. Um grande artista! Um dia, ele volta. Um dia, você saberá de tudo. A menina sem história utiliza-se de seu corpo para gritar o seu sofrer. Vive doente. Sente-se um fardo. Não quer morrer antes de conhecer o pai, antes de se desembaraçar dessas duas mães que a fazem sofrer com as suas próprias agruras da alma. 

Essas mães que desejam, antes de tudo, um instante de glória no palco, esquecem-se de viver de verdade em sua casa, palco não da beleza, mas da tragédia, do horror. Escondem seus corpos feridos em belas roupas na tentativa de reencenar os momentos gloriosos das grandes artistas do cinema; o fim do espetáculo, as palmas, o beijo dos protagonistas, flores no chão, o fechamento das cortinas que anunciam o fim, ou então a promessa mesquinha da eternidade. Através da morte? 

Mulheres que se eternizam belas

Ó Pai, todo poderoso, tenha piedade de nós. Como no cinema, essa ficção possui mulheres que se eternizam belas. Morrem jovens para não serem devastadas pelo tempo. Tempo este desejado pela menina que gostaria de ter herdado desse pai, que não tem rosto, um relógio que lhe dê o compasso do tempo numa casa em que os papéis de mãe e filha não possuem fronteiras: se chocam de forma violenta e anárquica, fazendo com que seus corpos gritem, vertam sangue pelos pulsos através dessa fina película chamada de pele que é incapaz de conter o horror que irrompe de dentro do corpo feminino. Horror que é camuflado por uma grossa camada de maquiagem e roupas belas. 

Tudo que a menina mais deseja é ter em volta de si uma moldura na qual ela possa se sustentar, uma pele mais grossa que esconda as feridas do corpo em carne viva. A menina se volta para a encenação de uma pretensa normalidade na tentativa de camuflagem no meio social. Vejam bem, um corpo ferido e exposto precisa se proteger, tudo de fora poderia machucá-lo. 

Quando a normalidade não mais a sustenta e a menina precisa utilizar-se de sua própria força para se defender: um castigo! A pena: trabalhar em um cenário cheio de narrativas a serem lidas pela primeira vez, a biblioteca da escola abriga o corpo exposto da menina sem história. As palavras suturam as chagas da alma e restituem quem as conta à primeira pessoa do singular. 

Mas é apenas a partir do contato com a história da família de seu pai, escrita pela sua mãe, que a menina consegue algum compasso no tempo preenchendo com as palavras os buracos “mal-ditos” em seu corpo. Maldita era a história desta menina, agora no passado, convocando seu corpo a reinventar-se através do tempo, um tempo já distante daquele horror vivido em sua pré-história. A verdade sobre o pai permite que a menina possa se desvencilhar de uma série de repetições de corpos femininos, apenas belos e mortos, eternizados por momentos de glória romântica antes do fim e do despedaçamento dos sonhos. 

Ó pai, todo poderoso, tenha misericórdia de nós. A história do pai lhe permite um corpo, um corpo de mulher não mais fadado à morte precoce como todas as mulheres da família de suas mães: belas para-todo-sempre, mortas muito jovens e sem tempo de criarem algo diferente de outros corpos somente belos. A história do pai lhe permite distância, pois o horror, quando narrado, já é ficção, já ficou para trás, resta apenas como lembrança emoldurada pelas palavras. A testemunha desta história deixa de ser apenas Jesus pregado na cruz numa casa com paredes estriadas e estruturas duvidosas: as testemunhas arrebatadas por essa ficção somos agora nós, seus leitores. 

Com sorte, espero que você esbarre nessa história e se convoque a fazer algo com aquilo que o faça sofrer. Pois não passará ileso por essa narrativa, que nos convoca a pensar tanto sobre a nossa própria história, sobre nossos buracos “mal-ditos”, sobre o silêncio das figuras que exercem poder e sofrer. Também nos convida a olhar para os céus e pedir algum alento, quando a força se encontra apenas dentro de você e a partir de você. Corajosas são aquelas pessoas que deixam de olhar para cima, perdendo-se na vertigem do infinito, e decidem olhar para frente, tendo, em sua própria companhia, alguma história para contar de um tempo que já passou.

Serviço
Mundos de uma noite só
Renata Belmonte
Editora Faria e Silva
200 páginas
R$ 56

Ana Carolina Valim

Psicóloga e psicanalista formada pela PUC-SP. Pós-graduanda em perinatalidade e parentalidade pelo Instituto Gerar de Psicanálise.