Bemdito

Crime de rico e crime de pobre

Reflexões sobre a seletividade do sistema de justiça criminal no Brasil
POR Alex Mourão
(Foto: Delaney Turner)

Tem o rico, tem o pobre e tem a cadeia. Para pobre.

Tem o branco, tem o preto e tem a cadeia. Para o preto.

Tem quem manda e tem quem obedece. Com cadeia para quem desobedece.

Será que é isso mesmo? Antes de explicar, já digo logo: é isso mesmo.

Em diversos outros textos, nesse espaço, estamos sempre conversando sobre a seletividade do sistema de justiça criminal. Uma seletividade, não me canso de falar, que tem cor, endereço e idade. Sempre que trato desse tema em sala de aula sou questionado pelos alunos: “será que é isso mesmo?”, “mas professor, eles não cometeram o crime?”, “mas professor, se está preso, alguma coisa fez”, e por aí vai.

Há, nessas falas, um erro claro que precisa de urgente correção.

Quando falamos de seletividade, em verdade estamos falando de comparações, ou seja, quando as forças de poder, construídas ao longo da história, traçaram uma linha — inclusive, nada tênue — entre aqueles que se amoldam a um modelo e outro. Esse modelo é o da conformação dos controles, isto é, aqueles que controlam e aqueles que são controlados.

 No primeiro grupo, os que controlam, temos as pessoas que estão próximas dos centros de decisão política e econômica, em resumo, quem manda, às vezes mais, às vezes menos, de acordo com os ventos da política e da economia, mas em essência, quem manda.

No segundo grupo, temos os que recebem as ordens. Esses se subdividem em diversos grupos. Temos os que obedecem sem pestanejar. Temos os que enfrentam a situação e depois são dobrados pelo sistema punitivo e temos aqueles que vão se acostumando e aos poucos, ao mesmo tempo em que são mandados, vez por outra sentem o gostinho de mandar. Esse último subgrupo é o da classe média. Sim, muitos de nós, leitores aqui do Bemdito. Que a carapuça caia sobre nossas cabeças.

Às vezes, recebemos uma certa parcela de controle e até imaginamos que mandamos em algo, pensamos tanto que mandamos que defendemos até reforma trabalhista (dita flexibilização num esforço de autoengano tão típico nosso) e reforma de previdência. Há de nós, na classe média, quem defenda até estado mínimo. Pois é, por mais incrível que pareça, há.

Voltando. No nosso mesmo grupo (sim, no nosso mesmo grupo, ou você caro leitor ou leitora acha que senta na mesma mesa do grupo de cima?), temos aqueles que desde sempre estão marcados, na pele, no endereço, na vida. Aqui, a essas pessoas, desde sempre, existe um descompasso entre o que delas é exigido e o que a elas é ofertado. Esse descompasso é mais claramente visto no que chamamos de desigualdade social. Ao passo que esses excluídos são cobrados, nada lhes é dado. Parece até que aqui, em uma ironia terrível, o estado é mesmo mínimo. E esses são aqueles que não servem nem para ser explorados, como nós.

Do outro lado, os que mandam, mandam. E querem sempre conservar ou ampliar o poder, seja legislando, seja julgando. Quem manda tem bancada para fazer as leis.

Não acredita? Eu te mostro.

Nos crimes contra a ordem tributária, aqueles praticados por quem manda, tipo de crime conhecido como “crime de colarinho branco”, fala-se que o interesse maior do estado é em receber os valores desviados e não em aplicar pena de prisão. Então, esse tipo de crime tem a sua punibilidade extinta quando ocorre o pagamento dos débitos tributários que foram desviados.

Observe que a extinção da punibilidade, com o pagamento integral do débito, pode ocorrer em qualquer momento do processo, inclusive após a condenação. Em outras palavras, havendo crime tributário, quem desviou pode pagar integralmente e ter sua punibilidade extinta. Isso ocorre nos crimes tributários. Crimes de rico.

Agora, caro leitor ou leitora, imagine que alguém furta uma bicicleta. Alguém pobre. Porém, com dor na consciência pelo ato praticado, de forma voluntária resolve devolver. Observe que ele devolveu integralmente a coisa. Mas, ainda assim, ele está sujeito a responder pelo crime de furto e o fato de ter devolvido irá lhe render apenas a redução da pena de um a dois terços. Detalhe: precisa devolver antes do recebimento da queixa ou denúncia.

Comparando. Quem pratica crime tributário e devolve, em qualquer momento do processo, tem extinta a punibilidade. Quem furta e devolve, tem redução de pena, desde que a devolução tenha sido antes da queixa ou denúncia.

Agora lanço um desafio, olhando esses dois crimes, qual é o de rico e qual é o de pobre? É por isso que crimes tributários quase não aparecem nas estatísticas de pessoas presas.

Esse é apenas um exemplo da lei que mostra bem como funciona o sistema de justiça criminal.

É por tudo isso que existe o direito do rico e o direito do pobre. Não deveria, mas existe.

No direito dos ricos, dinheiro no exterior (tanto que aqui não cabe) é bonito, declarado ou não. Meritocracia. Afinal “eu ME-RE-CI”.

No direito dos pobres, qualquer quantia portada por quem é preso com um baseado é logo vista como elemento que configura o tráfico.

Então, rico pode ter dinheiro no exterior, presume-se correto, no máximo um ou outro formulário que esqueceu de assinar. Já o pobre, ou tem o baseado ou tem o dinheiro. Se tiver os dois não é consumom, e sim tráfico, presume-se logo. E se o dinheiro for pouco? “Era pra troco da droga”, assim dirão. E se o dinheiro do pobre, naquele momento, for um pouquinho mais? “Vixe, num disse que era tráfico?”, dirão.

A historiadora Lilia Moritz Schwarcz em seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro reproduziu o seguinte dito popular: “Quem furta pouco é ladrão/ Quem furta muito é barão/ Quem mais furta e esconde/ Passa de barão a visconde.” Assim, o ciclo tem se repetido e esse sistema de justiça criminal só irá mudar quando conseguirmos fortes transformações sociais, na base, mudando a própria estrutura da sociedade. Enquanto isso não acontece, vamos aqui, reclamando e gritando.

PS. Esta semana a Câmara dos Deputados aprovou o texto do projeto que deixa a lei de improbidade administrativa mais suave. É algo para se pensar, concorda?

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.