Bemdito

E se a gente abolisse o sistema penal?

Provocações iniciais sobre um mundo sem prisões
POR Geórgia Oliveira
(Foto: Tim Hüfner)

Existe uma máxima da moderação que diz que todo radicalismo é ruim. No entanto, muitas vezes uma ideia considerada radical é apenas um modo de transformar uma situação desde a raiz, desde a origem, e isso obviamente causa desconforto, para dizer o mínimo. O Direito, por exemplo, tende a caminhar sempre ao largo de qualquer posição que investigue as raízes do sistema ao qual ele pretende proteger e regular: as normas jurídicas prescrevem, estão sempre no plano do dever ser; como elas são e por quê elas são já é outro departamento, um que fica quase sempre como uma inquietude que está para além da nossa formação.

Uma dessas prescrições que não tiram o sono da maioria de nós é a existência das prisões. A lição de Direito Penal é simples: os tipos penais prescrevem condutas que serão sancionadas pelo Estado, por meio do monopólio da força e da aplicação das penas. Os crimes que estão previstos no Código Penal e nas demais legislações criminais existem porque é preciso pôr um freio à criminalidade, ora? O que há de se questionar nisso?

Como Angela Davis analisa em seu livro Estarão as prisões obsoletas?, a prisão é um aspecto inevitável e permanente da nossa vida social: não nos imaginamos sem elas, seus muros e cercas elétricas, ao mesmo tempo que esquecemos com muita facilidade quem a sociedade, o Direito e o Estado depositam lá. Quem vai se importar com criminoso, ora? Se eles estão vacinados ou não, se a marmita que eles comem está azeda ou não, não é do nosso interesse. A meritocracia, tão valorizada por alguns, não falha na avaliação do senso comum sobre a prisão: se está preso é porque mereceu.

Esse tema sempre me coloca a pensar, mas às vezes fica ainda mais evidente e incômodo. Recentemente fui interpelada de surpresa com um comentário acerca da criminalidade: “tem que mandar prender mesmo esses vagabundos, né não professora?”. Minha cara não foi de espanto, mas de abatimento. Outro dia, enquanto assistia a uma palestra de um colega extremamente compromissado com os Direitos Humanos em um evento de outro estado, um aluno de um semestre inicial perguntou sem maiores rodeios: “e se a gente tipificasse esse crime com pena de morte?”. Na hora, minha reação passou de desconcertante a reflexiva: o que leva um jovem a propor a morte de outra pessoa como solução de um problema social com tamanha naturalidade?

Das arcadas ao bacharelismo, nós, os aprendizes do poder e do Direito, nos colocamos na posição de exercer o controle social sem maiores reflexões. Não é um estado de alienação total, mas de senso de dever: as prisões existem, a pena privativa de liberdade é aplicável, que reflexão ainda cabe? Mas, ainda como Angela Davis nos ensina, precisamos questionar: como tantas pessoas foram parar na prisão sem que houvesse maiores debates sobre a eficácia do encarceramento? Como o sistema penal cresceu tanto, a ponto de termos mais de 800 mil presos, e nossos governos projetam gerar mais prisões e mais repressão?

Se essas questões são um incômodo pra mim, que gozo de muitos privilégios sociais e falo sobre esse tema numa posição distante, de pesquisadora, imagina pra quem precisa lutar concretamente contra o encarceramento.

Aprisionamento e estigmatização
Para além das análises criminológicas, quero que eu e você, leitora e leitor, nos questionemos por quê foi a prisão que elegemos como a solução dos nossos problemas com a violência e os conflitos. É simples: não se trata do combate à violência, mas da manutenção do status quo e do privilégio de algumas classes, a partir da estigmatização e do aprisionamento da (não) população, aquela que deve ser despersonalizada e confinada sob a justificativa da ressocialização e do controle social.

Nós abraçamos a mentalidade retributiva e punitivista, que se dedica à proteção do patrimônio de brancos e ricos e à criminalização da população negra, com a naturalidade de quem simplesmente não quer se responsabilizar por refletir sobre os problemas de nossa sociedade, de quem se beneficia dessa estrutura de controle.

Desnecessário lembrar que essa é uma lógica de privilégio que só pode ser apreendida a partir da estrutura racista da sociedade brasileira e que os grupos protegidos e controlados têm cor. Se está na moda reconhecer o racismo estrutural e pregar o antirracismo, como tantas vezes problematizou Izabel Accioly em suas colunas, que tal reconhecer seu papel de aceitação dessa estrutura? Que tal usar seu antirracismo para pensar um mundo sem o genocídio de pessoas negras em prisões?

Se você chegou até aqui, é provável que esteja indignado ou curiosa, se perguntando: mas o que vamos fazer com os bandidos? Podemos começar pensando quem é rotulado como bandido e a quem serve os crimes que utilizamos como justificativa do controle social.

Os presos por crimes contra a vida ou contra a dignidade sexual, dois dos bens jurídicos que efetivamente apresentam ofensa à pessoa humana, constituem no Brasil pouco mais de 20% da população carcerária do Brasil, enquanto os presos por tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio passam de 70% dos encarcerados pelo sistema, um universo de quase 494 mil pessoas. Se essas são as prioridades do sistema, o encarceramento protege quem, ou o que? Se criar mais prisões e prender mais significa mais pessoas nesse grande sistema de “ressocialização”, por que o Brasil não é o paraíso da paz na Terra?

Em vez de nos perguntarmos sobre como expandir o sistema penal, diminuindo nosso controle sobre suas ilegalidades, deveríamos nos perguntar o que podemos fazer pelos presos provisórios mantidos em cárcere, pelas mães e famílias que sofrem para manter e defender seus filhos e filhas que são encarcerados, pelas vítimas da violência que causa danos à vida das pessoas e que em nada se beneficiam do sistema penal-carcerário. Deveríamos nos voltar à radicalidade de pensar um mundo sem prisões; de pensar, principalmente se você está no campo jurídico, em outras formas de resolver os conflitos sociais.

Se essas ideias parecem “perigosas”, pense que o perigo maior é manter uma sociedade que dorme confortável com a ideia de que manter pessoas encarceradas resolverá seus problemas. Para terminar essa reflexão, deixo os passos dos Racionais MC’s:

“Cadeia? Guarda o que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz”

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.