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Os esquecidos e o vírus

O paradoxo do Judiciário brasileiro: incentiva o desencarceramento em função da pandemia, mas nega pelo mesmo motivo
POR Alex Mourão
Foto: Yuri Cortez / AFP

O paradoxo do Judiciário brasileiro: incentiva o desencarceramento em função da pandemia, mas nega pelo mesmo motivo

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

Em 2012, quando ocupava o cargo de ministro da Justiça, o advogado José Eduardo Cardozo, em evento com empresários na cidade de São Paulo, disse que preferia morrer a cumprir uma longa pena de prisão no sistema prisional brasileiro. Naquela ocasião, ele chamou o sistema prisional brasileiro de “medieval” e de violador dos direitos humanos. Nesse mesmo ano, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), ligado ao Ministério da Justiça, o país contava com 549.800 pessoas privadas de liberdade.

A maior parte dessas pessoas cumpria pena em regime fechado, em masmorras medievais, para imitar as palavras do então ministro. Bem mais da metade das unidades prisionais do país não tinha sequer módulo de saúde ou consultório médico. Ao mesmo tempo em que falta estrutura mínima de saúde, sobra gente. Muita gente.

Nos oito anos que separam a fala do ministro e a pandemia de Covid-19, muita coisa aconteceu. Aquilo que já era ruim conseguiu ficar pior ainda. Pior, de uma forma tão grave, que não dava mais para esconder. Até o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o absurdo, usando um termo bem bonito para definir: “Estado de coisas inconstitucional”.

Em liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, foi decidido (reconhecido) exatamente o que o bonito nome definiu: que o sistema prisional brasileiro é violador dos mais básicos direitos das pessoas presas. O reconhecimento é tão contundente, que o Ministro Marco Aurélio chega a afirmar que aos presos é negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre.

Entre um evento e outro, da fala em 2012 e a pandemia, passando pelo reconhecimento do STF, o sistema piorou. Atualmente a população carcerária já passa dos 800 mil presos, nas mesmas condições insalubres, com uma crônica falta de vagas, em um ambiente de extrema vulnerabilidade sanitária, onde essas pessoas têm 10 vezes mais chance de contrair HIV do que quem está fora. Nesse mesmo ambiente, a chance de contrair tuberculose é 28 vezes maior. Um caos sem fim e esquecido.

Nesse mesmo sistema prisional onde jogamos e esquecemos as pessoas, apesar de ser um mundo paralelo, a pandemia também chegou. Segundo relatório publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no comparativo entre o final de 2020 e o começo de 2021, o número de mortes aumentou 190%, nas masmorras. Ops, no sistema prisional.

Esse crescimento do número de mortes ocorre mesmo com a edição da Recomendação n° 62, de 17 de março de 2020, em que o órgão orientava os Tribunais de Justiça de todo o país a tomar medidas no sentido de reduzir os impactos da pandemia no sistema prisional. Entre as medidas, estava a reavaliação da necessidade de prisões provisórias, com prioridade a pessoas idosas, mulheres gestantes e pessoas de grupo de risco.

A recomendação, desde março do ano passado, orientava essa mesma reavaliação sobre prisões provisórias de pessoas que se encontram em unidades prisionais lotadas ou sem serviços de saúde. Por fim, indica que novas prisões provisórias devem ser analisadas sob a ótica da excepcionalidade. Além dessa, sobre o mesmo tema, o CNJ editou também a Recomendação n° 68 de 2020, a Recomendação n° 78, também de 2020, e a Recomendação n° 91, de 2021.

Apesar de repisar direitos que já deveriam ser reconhecidos, independentemente de pandemia, a novidade das recomendações está na preocupação do CNJ com o sistema prisional e a propagação da pandemia. Em fevereiro último, a segunda turma do Supremo referendou liminar determinando, basicamente, a reavaliação da necessidade de manutenção de pessoas presas no sistema prisional.

Porém, mesmo assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem negado diversos pedidos no sentido de conceder prisão domiciliar a presos provisórios que estão em situação de vulnerabilidade por conta da Covid. A justificativa para negar, como no caso do Habeas Corpus 596.189, tem sido a alegada impossibilidade de verificar a situação individual das pessoas eventualmente beneficiadas.

Ou seja, o Judiciário, por um lado, incentiva o desencarceramento em função da pandemia, mas por outro, diz não ser possível desencarcerar, pelo mesmo motivo. Ou, na melhor das hipóteses, reconhece que o sistema prisional não consegue nem mesmo verificar quem está em situação de maior risco.

Novamente, o caos. O cárcere brasileiro parece, de certa forma, espelhar o que acontece na sociedade extramuros. Por isso, penso que pode estar certa a frase atribuída a Dostoiévski, onde o russo diz que é possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.