Bemdito

O tempo e o crime: reflexões sobre o Caso Evandro #2

Qual é a responsabilidade de agentes públicos e órgãos da imprensa no tratamento de casos de grande repercussão?
POR Geórgia Oliveira

Eu não lembro quando comecei a consumir conteúdo de true crime, só consigo lembrar que ainda adolescente esse já era meu tipo de conteúdo favorito. Era um tempo sem Netflix ou Amazon Prime, em que fazer o download de uma série por torrent era um suplício. Eu acordava às 5 horas da manhã, algumas vezes por semana, para assistir aos novos episódios de séries como Law and Order e CSI, além de nunca perder o clássico Linha Direta, nas noites de quinta-feira.

Com o tempo, a oferta de programas, filmes, livros e podcasts que se dedicavam a tratar sobre crimes e aspectos reais do sistema de justiça criminal cresceu. Popularizou-se também o consumo sobre esse tipo de mídia, que se tornou um fenômeno em expansão, inclusive no Brasil.

Mas o que atrai uma pessoa para histórias de crimes e o que torna o consumo desse tipo de conteúdo quase um vício para muita gente? Eu comecei a refletir sobre isso no final de 2019, quando percebi que quase todo conteúdo que eu consumia estava ligado, de alguma forma, à violência e à criminalidade.

Nessa época, já me dedicava à pesquisa sobre feminicídios e violência de gênero e comecei a notar que minhas horas de descanso, mesmo as mais curtas como a hora do almoço, eram preenchidas por conteúdo de true crime nacional e de outros países, para além do que eu já enfrentava nas horas de pesquisa. Mantinha-me atualizada sobre todos os episódios novos das séries e podcasts que assistia, procurava novos filmes e documentários sobre crimes (e sempre achava, com uma periodicidade de lançamentos mensais), além de livros sobre delinquentes famosos. Isso enquanto estudava e acompanhava casos de feminicídio diariamente.

Então, comecei a me perguntar, como leiga mesmo, o que diferenciava esse consumo constante de histórias sobre crimes e o consumo popular de programas policiais na TV aberta, que eu sempre rechacei tanto, por achar que eles exploravam de forma sensacionalista a violência.

Quem mora no Ceará, assim como em muitos outros estados do Brasil, acostumou-se com o jornalismo policial e a exposição no horário do almoço de pessoas mortas violentamente e de cenas de crimes exibidas sem nenhum filtro, com a população em volta do local na expectativa de aparecer na TV. Por algum tempo, tentei me enganar sobre o refinamento do conteúdo que eu assistia em relação aos programas locais, mas esse argumento durou muito pouco: os dois, de forma diferente, frequentemente transformavam crime em entretenimento.

Comecei a questionar também como o consumo desse tipo de conteúdo pode ou não distorcer a visão sobre o sistema de justiça criminal, principalmente quando vemos a popularização de programas que retratam julgamentos e perícias criminais em tribunais americanos.

Se a banalização da violência é uma preocupação, ainda precisamos pensar se a percepção do que é realidade e do que é ficção sobre o sistema de justiça não está sendo borrada a partir das expectativas criadas por esses programas. Para quem está do lado de fora desse aparato estatal de julgamento e repressão, o que fica de impressão sobre o trabalho policial e judicial quando se consome conteúdos baseados em crimes reais ou mesmo quando se assiste coberturas de crimes de grande repercussão?

Lázaro, o suposto serial killer

Na última segunda-feira, Lázaro Barbosa foi morto com 38 tiros após 20 dias de buscas e R$ 19 milhões gastos na busca pelo responsável pela morte de quatro pessoas da mesma família. Logo após a morte, policiais foram vistos se abraçando e comemorando o “sucesso” da operação com uma série de flexões. Manchetes diárias no último mês noticiavam que o assassino seria um psicopata, teria pacto com o demônio e até ligavam-no erroneamente com religiões de matriz africana, embora a própria família do suspeito tenha afirmado várias vezes que ele era evangélico.

Pelas apurações preliminares, ele não era um serial killer psicopata – na verdade, havia sido contratado por um fazendeiro da região para ameaçar moradores de propriedades rurais na expectativa de que estes deixassem a área e quisessem vender suas terras por preços mais baixos. A partir desse acordo, a atuação de Lázaro saiu do controle e ele assassinou uma família, levando à caçada que assistimos nos últimos dias.

Recebi por Whatsapp, como muitos, as imagens do homem cravejado de balas e vídeos da ação policial, junto com muitos emojis de palminha e comemorações explícitas da morte da única pessoa que poderia desvelar a real motivação para todo esse caso e apontar outros envolvidos na morte violenta da família de Ceilândia (DF). Fico pensando como esse caso será retratado no futuro: como informação sobre o caso ou como entretenimento?

A leitora ou leitor deve esperar agora um grande discurso sobre como devemos parar de consumir esse tipo de conteúdo. Bom, eu continuo consumindo muitas histórias de crimes reais e pensando nessas questões como um problema de pesquisa para a minha área – a criminologia –, que estuda como a criminalidade é definida socialmente e como esse fenômeno acontece de maneira desigual e seletiva. A única diferença é que agora tenho mais critérios para escolher o que vou consumir. 

Série do caso Evandro: sobriedade necessária 

Nesse sentido, o trabalho de Ivan Mizanzuk, no Caso Evandro, narrado brevemente na semana passada, ajuda a perceber não apenas os limites éticos do trabalho de narrar casos de crimes reais, mas também demarca de maneira clara para o ouvinte quais parâmetros ter para identificar virtudes e problemas em conteúdos de true crime.

A característica mais evidente da narrativa do Caso Evandro é o pesar que atravessa todos os episódios: da trilha sonora ao próprio tom de voz, tudo é tratado com a sobriedade e a seriedade que merece a história do assassinato de uma criança. O que ganha protagonismo enquanto fonte de entretenimento não é a violência, mas a maneira como a história é narrada e como todos os elementos contraditórios são dispostos ao espectador, sem abrir espaço para conspiracionismo. 

O Caso Evandro é uma história que precisava ser contada da forma mais responsável possível e de maneira diferente da narrativa de bruxaria e ritual satânico que marcou tão fortemente a cobertura do caso: ouvindo as perspectivas envolvidas, mas sem perder de vista a objetividade evidente nos erros do trabalho policial e judicial de instituições que se recusaram, por tantos anos, a apurar com seriedade as denúncias de tortura dos sete acusados pela morte de Evandro. Não à toa, foi o trabalho dele que revelou as fitas de áudio que registravam as torturas e os depoimentos forçados.

Situando o espectador em todos os procedimentos e problemas que constituem o nosso sistema de justiça criminal, é nessa perspectiva crítica que reside o melhor parâmetro para identificar conteúdo de qualidade. Afinal, como destaca Ivan, a partir do ensinamento de Jonathan Foster, “se alguém diz que está chovendo e outra pessoa diz que está seco, seu trabalho [do jornalista] não é citar os dois. Seu trabalho é olhar pela janela e descobrir o que está acontecendo”.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.