Bemdito

8 de março: sentamos e choramos ou ocupamos espaços e debatemos?

Os símbolos de uma data feminista para além das metáforas florais
POR Paula Brandão

Oito de março é o dia internacional da mulher proposto, inicialmente, pela feminista socialista Clara Zetkin, em 1910, mas no Brasil é mais associado ao incêndio que ocorreu em uma fábrica em Nova York, matando mais de 100 mulheres que eram trancadas durante o expediente para que não participassem das greves e manifestações sindicais. Uma data criada por motivações feministas, em que costumamos receber flores, talvez num flerte com a nossa suposta fragilidade e docilidade, mas a que temos respondido com palavras vorazes.

O dia tem grande importância nesse momento em que fatos históricos que tínhamos conhecimento pelo papel, pelas leituras que fizemos na escola, passam a compor a nossa dinâmica cotidiana. Estamos atravessando uma grande pandemia que já chega ao seu terceiro ano e deixa um rastro de miséria e aumento da violência doméstica contra as mulheres. E também algo, que tínhamos como distante de nossas vidas, acontece há 15 dias do outro lado do mundo, que é a guerra da Rússia contra a Ucrânia, e sabemos que as mais violentadas durante guerras são as mulheres, seja por tentarem fugir com seus filhos, mães e irmãs, seja pelo estupro, pobreza e fome.

O áudio vazado no whats app de um deputado brasileiro, que disse ter ido à Ucrânia para ajudar, deixa ainda mais evidente as violências que recaem sobre as mulheres em situação de guerra. Ele disse: “as ucranianas são mais fáceis por serem pobres.” À fala covarde e violenta desse homem, lembro que essas mulheres a que ele se refere, eram como nós. Um dia dormiram professoras, cientistas, estudantes, donas de casa, jornalistas, médicas, faxineiras, e acordaram em plena guerra, apartadas de suas existências profissionais e pessoais, deixando para trás suas casas, seus parentes, livros e esperanças.

Svetlana Aleksiévitch, em A guerra não tem rosto de mulher, afirma que em sua infância passou o tempo inteiro lendo sobre as guerras, porque seus contemporâneos gostavam de lembrar a vitória de seu povo. Sua geração tinha a guerra como um personagem central de suas vivências, sendo convidada para sentar à mesa do café da manhã aos jantares de família. Nascida na Ucrânia, ela diz que desde muito pequenos os meninos são criados para defenderem seu país, essa lembrança sempre está à espreita. 

Seu livro considera que as mulheres não tiveram voz sobre suas narrativas de guerra. Assim como outros grandes movimentos que implicavam a luta, a exemplo da revolução francesa, em que as mulheres participaram amplamente, mas sempre foram alijadas do quadro de memórias e medalhas conquistadas, a autora procurou entender os motivos de um silêncio ensurdecedor sobre a guerra, e ouviu de uma ex-combatente:

“Não posso, não quero lembrar. Passei três anos na guerra, e nesses três anos, não consegui me sentir mulher. Meu organismo perdeu a vida. Eu não menstruava, não tinha quase nenhum desejo feminino. E era bonita…Quando meu marido me pediu em casamento, ele disse: ‘A guerra acabou. Sobrevivemos. Tivemos sorte. Case comigo.’(…) No meio da fuligem preta, tijolos pretos, (eu disse) olhe para mim, veja como estou! Primeiro, faça de mim uma mulher: me dê flores, flerte comigo, diga palavras bonitas.”

Distantes dessa realidade, embora alguns territórios brasileiros sejam tomados por um cenário de guerra, nós, brasileiras, temos a imagem de soldados de papel, de batalhas gravadas nas palavras dos livros, e fomos pegas de surpresa com mais um fato histórico a nos atropelar. Por outro lado, brasileiras que moram naquela região, estão pegando o carro e tentando atravessar famílias inteiras desesperadas para cruzar a fronteira para um país seguro. Sim, elas e outras mulheres ucranianas têm mostrado suas presenças não só nessa travessia, mas no enfrentamento ao exército russo. Lembro da mulher que vai desarmada, ao encontro de um soldado russo, oferecendo sementes de girassol: “Pegue-as e coloque-as no bolso, para que pelo menos os girassóis cresçam quando todos vocês se deitarem aqui. Você veio para minha terra, vocês são inimigos.”

Quero crer que as flores que nos dão, por nosso dia, sejam girassóis amarelos, cheios de tons e esperanças. São de aço e de mulheres corajosas, que não se calam e nem se deixam dominar pela guerra ou opressão. Sempre acordo cansada, diria até exausta, no dia 09/03, por ser convidada para ocupar diversos espaços e falar sobre violência contra as mulheres, a falta de representatividade na política ou, ainda, sobre a opressão que vivemos por nos submetermos a determinados padrões de beleza. 

De maior ou menor envergadura, não me interessa a quem a minha palavra vai chegar, se ao lado da ilustre Maria da Penha pela manhã, discutindo violência, ou à noite, ao lado de uma mulher de mais de 60 anos que comemora sua liberdade sexual. Como diz Virginia Wolf: “Por muito tempo na história, anônimo era uma mulher”, que agora possamos discutir e escrever a nossa história, em primeira pessoa, e possibilitar que tantas outras expressem as suas, mesmo em tempos tão espinhosos.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).