Bemdito

Terra indígena e Marco Temporal: 500 anos de discussão teológico-jurídica

Aras se manifesta contrariamente ao projeto, mas parece ainda guardar alguma confusão, hesitação, ou, até mesmo, contradição
POR Ricardo Evandro
Foto: Fabio Rodrigues / Pozzebom

Augusto Aras é o atual procurador-geral da República. Ele representa o cargo máximo do Ministério Público Federal, fiscal máximo da lei. Por isso, é muito importante a sua manifestação no caso do chamado Marco Temporal sobre a demarcação das terras indígenas, no Brasil – no caso do Recurso Extraordinário n. 1017365, ou seja, FUNAI versus Estado de Santa Catarina.

Sobre o tema do genocídio indígena, ainda em curso, e sobre as tentativas do agronegócio de alterar a legislação em favor da grilagem, nesta coluna pude entrevistar o Cacique Yssô Truká e o pesquisador Maurício Borba Filho (PPGA-UFPA). Mas hoje gostaria de falar sobre a manifestação oral de Aras sobre o tema, publicada na versão escrita ontem, 2 de setembro.

Aras se colocou de modo contrário à tese do Marco Temporal. Isso significa que, supostamente, o procurador não concordou com a tese defendida pelo atual governo de Jair Bolsonaro, pela “Bancada do boi” e pelo agronegócio: em nome da segurança jurídica, defendem que seria preciso definir, marcar temporalmente, que são e serão consideradas terras indígenas somente aquelas terras já ocupadas pelos povos originários no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Essa é uma disputa muito importante. Há o legítimo e legal engajamento dos povos indígenas brasileiros em defender as terras reconhecidas como tradicionalmente suas, mesmo após a Constituição Federal de 1988. Além disso, a luta contra a tese do Marco Temporal é em defesa da legalidade das terras que ainda possam vir a ser reconhecidas como territórios indígenas, mesmo depois de muito tempo de ocupação colonial, como consequência da expulsão violenta e genocida que sofreram.   

Assim, na sua manifestação, Aras fala por mais de dez páginas sobre o tema, parecendo atento à gravidade da questão em disputa – o que não pode nos fazer esquecer de suas omissões e de sua perseguição contra o professor Conrado Hübner. Citando o antropólogo Darcy Ribeiro, ele chega a reconstruir a historicidade colonial brasileira e, corretamente, cita as jurisprudências brasileira e das Cortes internacionais de Direitos Humanos, favoráveis à causa indígena. Aras até chegou a lembrar do famoso caso Comunidade indígena Xákmok Kásek versus Paraguai.

Trata-se de quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a personalidade jurídica coletiva do povo Xákmok Kásek – a propósito, cheguei a publicar artigo sobre este caso em 2014, quando pude falar sobre a “sensibilidade jurídica” (Clifford Geertz) indígena diante da tradição do Direito moderno.  

Na mesma manifestação, o procurador-geral chega até mesmo a elogiar o “precioso relato” do Cacique Raoni, na Assembleia Nacional Constituinte, de 1988, ao lembrar e comentar “(…) da importância de garantir, com segurança jurídica, a correta identificação das terras indígenas. O estado de incerteza quanto a esse aspecto já foi responsável pelo derramamento de sangue, suor e lágrimas.”.

Contudo, por mais que Aras tenha aparentemente se posicionado a favor da causa indígena – de modo contrário à tese do Marco Temporal, portanto –, é preciso dizer que sua manifestação, no caso ainda sob decisão pelo Supremo Tribunal Federal, parece ainda guardar alguma confusão, hesitação, ou, até mesmo, contradição.

Depois de tantas citações, referências e demonstrações de uma quase solidariedade para com a causa indígena no Brasil, ao fim de sua manifestação, Aras parece hesitar no seu posicionamento, até então contundente. Ele é claro ao dizer que dá provimento ao que os povos indígenas brasileiros reclamam, com base no Artigo 231 da nossa Constituição de 1988, quando se assegura “(…) o dever estatal de proteção dos direitos das comunidades indígenas, antes mesmo da conclusão do processo demarcatório, dada a sua natureza declaratória.”.

Porém, ao mesmo tempo, Aras parece retroceder, ao dizer que as delimitações das terras indígenas, ocupadas tradicionalmente, “por motivos de segurança jurídica”, devem ser interpretadas caso a caso. Assim ele diz: “Por motivos de segurança jurídica, a identificação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios há de ser feita no caso concreto, com a regra do tempus regit actum, aplicando-se a cada caso a norma constitucional vigente ao seu tempo.”. 

O mais interessante aí é perceber como é possível se fazer um discurso em favor dos indígenas brasileiros e brasileiras, mas, no mesmo ato, na mesma manifestação, defender uma posição que apela ao caso concreto por meio da aplicação da regra do tempo circunstancial, enquanto regente dos atos de reconhecimento de território indígena (tempus regit actum).

Para ser mais claro, quero chamar a atenção para a saída possivelmente contraditória feita por Aras: por um lado, defende que se estude de modos histórico, arqueológico e antropológico as terras ocupadas tradicionalmente, mas, por outro, sem maiores explicações, deixa para que cada caso seja interpretado à luz da vigência constitucional de cada época.  

Por mais que o apelo à forma jurídica do tempo de cada ato legal posto pareça ser razoável, questiono: não seria este recurso apenas mais um motivo para mais insegurança jurídica? Será que talvez fosse melhor se posicionar de vez por uma regra que não se resuma às circunstâncias legal-judiciais das Constituições de cada época, para decisão de cada terra indígena reivindicada?

É preciso que se tenha a devida tomada de consciência do quão problemática é a concepção mesma de “segurança jurídica” neste caso. Pois este é um caso que desafia o próprio conceito de “segurança jurídica” na sua essência conceitual e na sua teleologia.

A ideia de “segurança jurídica” precisa de mais cuidado porque ela está sendo usada justamente pelo agronegócio com a finalidade muito clara de não se ter suas terras reivindicadas pelos povos indígenas. Isso poderia ser razoável e legítimo, a não ser pelo motivo de que, como sabemos, e como o próprio Aras sabe e menciona na sua Manifestação, tudo ou a maior parte destes territórios são frutos de expropriação pela colonização e por suas técnicas necropolíticas (Achile Mbembe).

Então, para quem serve o invocar da “segurança jurídica”? Seria apenas para a segurança dos negócios que exploram a agricultura, pecuária e extrativismo mineral e vegetal? Ou isto não seria apenas um modo de dar garantia constitucional às verdadeiras invasão e grilagem fundantes, que estruturam o nómos da terra brasileira?

A manifestação do procurador-geral da República no caso do Marco Temporal dos territórios indígenas acaba por lembrar de uma antiga disputa jurídica e, talvez sobretudo, teológica, sobre a legalidade da colonização, ocupação e até da escravidão do e no território do Novo Mundo.

Especificamente, falo das discussões travadas nas Escolas de Salamanca e Ibérica da Paz. Aqui, destaco um dos textos de um de seus grandes nomes, daquele que teria fundado o Direito internacional moderno, um dos maiores nomes da Escola de Salamanca, o pretenso defensor dos direitos indígenas, o teólogo, padre dominicano: Francisco de Vitória.

Refiro-me, especialmente, ao seu texto Relectiones: sobre os índios e sobre o poder civil, de 1539. Dentre suas teses controversas e ambíguas, Vitória é aquele que tratou sobre quando os europeus colonizadores poderiam se apropriar de território ocupado quando as terras estivessem desocupadas e por meio da sua concepção de “guerra justa”. Sobre isso, posso tratar melhor em outro ensaio. Por enquanto, aqui, estou de acordo com o Conrado Hübner escreveu sobre o tema nesta semana, quando pede ao STF “coragem”, pois “o assunto é sério demais”.

É preciso que tenhamos consciência hermenêutica o bastante para perceber que o tamanho da responsabilidade que se tem ao criar ficções jurídicas para não darmos continuidade ao genocídio colonial. É preciso enxergar a grande hipocrisia aqui: os não-indígenas usam de suas visões de mundo, herdadas dos primeiros colonizadores, para  decidir sobre a propriedade das terras que lhe foram tomadas.

Vidas, tradições, memórias, preservação da natureza, riqueza e direitos estão em jogo. Tempo é a medida, e o modo de narrar a história do Brasil está em disputa. Além de coragem é preciso saber de qual lado se está. 

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.