Bemdito

31 de março: o golpe está logo ali

Mais uma vez assombrado pela ameaça de ruptura democrática, o Brasil se reencontra com os fantasmas do regime militar de 1964
POR Juliana Diniz

Mais uma vez assombrado pela ameaça de ruptura democrática, o Brasil se reencontra com os fantasmas do regime militar de 1964

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Em 31 de março de 1964, rompia-se o frágil regime democrático que despontou no Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial. Era uma década confusa, intensa, em que pulsões de transformação ameaçavam a tradição de poderes estabelecidos não só no Brasil, mas em repúblicas maduras ao redor do globo. Contracultura, movimentos sociais, revolução sexual, manifestações de rua, uma efervescência cacofônica que inspirava o senso bem traduzido por Gramsci de que o “velho está morrendo e o novo não pode nascer”. 

A intensidade ameaçadora dessa pulsão juvenil de vida explica por que a repressão do regime que se iniciou no Brasil em 1964 foi tão perversamente cruel. Ela guarda um desejo disciplinador e castrador. Já não precisamos detalhar as atrocidades praticadas pelas Forças Armadas a pretexto de salvaguardar o país do comunismo: são práticas bem documentadas, com autoria conhecida, os detalhes que sobreviveram no relato dos que padeceram nas celas e na clandestinidade. O golpe foi real. Brutal. Inquestionável.

O Brasil, ao contrário de outros países da América Latina que também mergulharam em regimes de exceção, não é afeito ao exercício difícil de passar a história de seus erros a limpo. Não se fez, nos anos que se sucederam ao fim do regime, uma justiça de transição digna, que pudesse oferecer reparação histórica e aprendizado para o futuro. É graças a essa omissão que as gerações boas de memória permanecem assombradas por coturnos, quarteladas e movimentos bruscos e perigosos como o que se viu durante esta semana nos bastidores de Brasília.

O medo que a atrapalhada reforma de Bolsonaro inspira não se explica apenas pela conjuntura que vem de 2018 para cá. É um medo mais profundo, eu diria que inconsciente. Como se o golpe – aquele de 1964 – nunca tivesse sido depurado. Uma dor ainda presente, ameaçando permanecer. Como se a História lembrasse: os vícios permanecem iguais, portanto os erros serão os mesmos. Afinal o interlúdio democrático foi uma quimera, tudo que era sólido desmanchou-se rapidamente no ar. O golpe foi real. É real. E está logo ali na esquina.

Esse golpe de hoje, que habita no discurso desejante do bolsonarismo, pode não estar na iniciativa do Presidente da República em politizar os quarteis, em despejar um Ministro da Defesa não domesticável, ou na renúncia conjunta do alto comando das Forças Armadas. O golpe pode não estar na iniciativa do líder do PSL que, na última terça-feira, 30, tentou pautar às pressas um projeto de lei que altera o instituto da mobilização nacional para dar amplos poderes ao Presidente da República. Poderes como a intervenção nos processos produtivos, a requisição de bens e serviços, a convocação de civis e militares, para não falar na possibilidade potencial de controle das polícias militares estaduais. 

O golpe não está na ordem do dia que será lida nos quarteis na sombria data de hoje, uma ordem assinada pelo novo Ministro da Defesa, o general Braga Netto. Segundo o documento, em 1964, “as Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o país, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. A nota menciona transição sólida e maturidade do aprendizado coletivo.

O golpe pode não estar em nenhum desses movimentos aberrantes. Nem nas investidas de Bolsonaro nem no negacionismo histórico dos militares brasileiros.

Não há golpe promovido pelo exército de um homem só – ou de uma família só. O golpe está ali na esquina porque, como bem lembrou Ricardo Evandro Martins, em texto também publicado hoje no Bemdito, o estado de exceção brasileiro não é mais um vislumbre, é uma realidade normalizada, perversamente banal, alimentada da inércia e da omissão institucional. O golpe já aconteceu. E foi pelo voto.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.