Bemdito

“Não nos enganemos mais: estamos todos perdidos!”

Em tempos de enganos e desatinos, que pulse o júbilo e o risco de se lançar à vida
POR Paula Brandão

Há sentidos vividos na pandemia que germinaram neste momento e que nos unem como seres humanos: o sentimento de imprevisibilidade, de fragilidade da vida, da falta de um parâmetro para o fim da crise e a ausência de respostas de como a vida planetária se constituirá depois disso tudo. Nunca a teoria de Zygmunt Bauman me pareceu tão elucidativa da sociedade em que vivemos, sobretudo a sensação de liquidez e de que todas as certezas se desmancharam. Seu conhecido e celebrado sistema para pensar a sociedade capitalista conduz como pano de fundo as vivências e experiências líquidas e as indagações constantes destes tempos fluidos. 

A solidez, que pensávamos ter, advinda da Modernidade, foi sempre associada aos intentos humanos de domínio do tempo e do espaço, de administrar e controlar um mundo previsível. Era o tempo da ordem, quando tudo parecia obedecer a um roteiro pré-ensaiado. Esses sólidos, que conduziam as marcas das tradições e valores fixos, derreteram-se. E as certezas foram demolidas, quando o minúsculo vírus assumiu o comando das nossas vidas, situando a onipotência de cada qual abaixo dos pés.

As condutas que considerávamos reais, sólidas, foram derretidas e pouca coisa ficou de pé nesse período. “Os padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar guiar, estão cada vez mais em falta,” assegura Bauman. Em tal circunstância, lembro que, nesse ano, mesmo o réveillon, festa cercada por rituais que nos permitem recordar e nos despedir das agruras vividas, foi contaminado pela desesperança de uma epidemia de gripe e da cepa ômicron, que nos impediu, mais uma vez, de viver a celebração desse dia.

Pesam sobre mim sentimentos contraditórios! Transito em um cotidiano exaustivo que vai das mais de oito horas trancafiada em frente às telas – com dezenas de grupos de whatsapp que começam a contabilizar mensagens às 5 da manhã – até as lembranças benfazejas de dias em que, ao acabar o serviço, eu tinha o acalento de sair direto para uma mesa de bar e dividir os acontecimentos com os amigos. Sinto-me exilada de mim mesma e, por vezes, me perco no excesso de informações desnecessárias compartilhadas nas redes, no disparo e falta de bom senso do colega de trabalho que acorda às 5 da matina e aproveita a sua insônia para enviar uma informação que poderia ser repassada, sem prejuízo, às 8. Que preço pagaremos em nossa própria vida pelo apelo constante e frívolo de mensagens, que não nos sustentam como humanos?

Lembro, e minha memória me trai. Visitando os arquivos de outrora e mirando minhas peripécias juvenis, cogito ser mesmo exagero aquela alegria que me invadia. Ruborizo-me em pensar nos desatinos e na euforia daquele tempo em que a minha imaginação e o meu viver não sofriam as interferências do wifi. E que comunicar era um ato auspicioso, no qual a palavra nascia na boca do estômago, trazia o carmim à face e saía em disparada pelos lábios! 

Mas, voltando para os tempos atuais, o título dessa coluna é do escritor Slavoj Zizek, em Pandemia, escrito no mês de março de 2020, quando ainda estávamos no escuro. E acho que continuamos tão perdidos quanto naquele momento. Na ocasião, ele dizia que passaríamos por algumas fases: a negação; depois, o sentimento de raiva – muitas vezes sob forma racista ou antiestado: “Os culpados são os chineses”; na sequência, entram os raciocínios da fase de negociação. E se nada disso funcionar, bate a depressão: “Não nos enganemos mais, estamos todos perdidos”. Mas como seria a aceitação? Ele revela que, mesmo a epidemia mundial acabando, precisamos pensar que nunca mais haverá a sensação de uma vida segura e normal. Isso nos foi roubado em definitivo!

O que vivemos é inaudito. Apenas sabemos que estamos perdidos sobre quando poderemos erigir as nossas demolições internas; sozinhos, mesmo que acompanhados, nas nossas dores e enlutamentos. Ressentidos de uma vida em que se tem poucos vestígios de alegria. Procuro me afastar da amargura que enfeia os lábios e dos olhares secos e nervosos dos desesperados! Diretamente do tempo dos cancelamentos e mal-entendidos, ouso dizer: não sei se sair de casa hoje em dia para um chopinho é pulsão de morte ou, legitimamente, de vida! Em tempos de enganos e desatinos, que pulse o júbilo.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).