Bemdito

Dia das crianças: dê um futuro de presente

É entendendo este mundo que as crianças se tornam capazes de construir outros
POR Rodrigo Iacovini
(Foto: Adam Le Sommer)

Você já contou para seu filho ou sua filha a história de sua cidade? Perguntou o que mais gosta ou o que acha menos legal nela? Explicou por que existem pessoas que estão em situação de rua? Conversou sobre as favelas pelas quais passam a caminho da escola? Se você gostaria de dar o melhor futuro possível para seus filhos, a hora de ter essa conversa é agora.

Quando fui convidado a resenhar o livro infantil São Paulo: a aldeia que virou metrópole, de Silvana Salerno, para a edição de outubro da revista Quatro Cinco Um, fiquei mais uma vez curioso sobre como meu afilhado, de seis anos, enxergava o mundo ao seu redor e conhecia a história de sua cidade, Fortaleza. Embora se tratasse de cidades diferentes, estava convencido de que ele poderia me fornecer pistas sobre como um livro destinado a crianças pode despertar o interesse da criançada no tema.

Do mesmo jeito que havia feito anteriormente como preparação para outros artigos sobre o tema publicados no Le Monde Diplomatique Brasil e aqui no Bemdito, fiz uma chamada de vídeo pelo celular com ele. Dessa vez, o Lego não competia comigo pela sua atenção, então acreditei que a conversa fluiria até mais fácil. Baita engano. 

Enquanto me mostrava os vários ambientes da sua casa e a vista da varanda, tentei puxar uma conversa sobre se estava rolando alguma construção nova ali no entorno de sua casa, se ele percebia alguma mudança olhando pela janela. Ele prontamente me cortou para contar sobre os móveis novos do quarto da irmã, que haviam chegado naquele dia, e depois me levou — ou melhor, levou a câmera do celular — para conhecer o armário do seu quarto, mostrar suas roupas, falar sobre os lençóis e toalhas guardados pela mãe. Em algum momento da conversa, ele até se dignou a me jogar um osso e dizer que sabia que o prédio dele havia sido construído sobre um terreno que antes abrigava duas casas. O avô dele havia contado essa história. 

Se a ligação serviu para matar um pouco das saudades que mais de dois anos separados fisicamente por conta da pandemia causaram, foi um tanto frustrante na perspectiva de compreender o olhar de uma criança sobre sua cidade. Saí me sentindo tão desinteressante quanto um quadro do Romero Britto.

Os anos de experiência em pesquisa me ensinaram, no entanto, que a ausência de dados é também um dado: meu desempenho pífio demonstrava que as ferramentas utilizadas eram inadequadas, ou seja, era irreal a minha expectativa de capturar essa percepção através de uma conversa nua e crua por meio de uma vídeo chamada de celular. Minha postura adultocêntrica não me permitiu enxergar o óbvio, que na conversa anterior o Lego não havia sido uma competição pela atenção, mas sim um mediador da interação. 

Da mesma forma, enredos, personagens ou ilustrações cativantes podem transformar livros como O dia em que meu prédio deu no pé, escrito por Estevão Azevedo e resenhado por Bianca Tavolari também para a Quatro Cinco Um de outubro, em ferramentas interessantes para facilitar conversas progressivamente mais densas com os pequenos.

No universo das classes média e alta brasileiras, em que cada vez mais se multiplicam os produtos e serviços destinados a crianças, tenhamos pelo menos a clareza de que é nossa responsabilidade proporcionar esses momentos de reflexão através do que damos a elas. Seguindo a escola Bela Gil, você pode substituir presentes que reforçam estereótipos de gênero e raciais, por exemplo, por um que permita à criança — de maneira divertida, claro — entender este mundo para construir outros. Dê hoje, de presente, um futuro melhor.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.