Bemdito

Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher?

O trabalho doméstico como pilar de sustentação do capitalismo e a importância de subvertê-lo
POR Paula Brandão
Sofia e Liev Tolstói

Anna Dostoiévski, Sofia Tolstói, Nadejda Mandelstam, Vera Nabokov, Elena Bulgákov e Natália Soljenítsin. Essas foram as jovens mulheres escolhidas pelos maiores escritores russos de todos os tempos, a julgar pelos sobrenomes. Fiódor, Leon, Ossip, Vladimir, Mikhail e Alexander, respectivamente, escolheram para casar as moças mais inteligentes e geniais de sua época, que passaram a ser confidentes e parceiras criativas. Por outro lado, as mulheres russas não se melindravam em assumir uma posição secundária na vida deles, afinal era gratificante ser a “rocha” em que eles se apoiavam. Sofia Tolstói asseverou:

“É impossível que o amor de uma mulher seja mais profundo que o meu por Lev Nikolaiévitch. Ele não era formoso, tampouco jovem, tinha apenas quatro dentes estragados na boca. Mas a alegria que se apossava de mim quando eu o encontrava…aquela alegria iluminou minha vida por um longo tempo.”

As esposas é o livro de Alexandra Popoff que me inspirou a escrever essa coluna. A autora conta como essas grandes mulheres serviram aos seus homens como agentes, estenógrafas, datilógrafas, pesquisadoras, editoras, negociadoras de dívidas, esposas, mães de seus filhos e garantiam que a casa ficasse “mergulhada no mais profundo silêncio” para que eles escrevessem. Passaram por todos os tipos de privação, enquanto esses homens produziam suas obras para a humanidade. Com a morte deles, elas prosseguiam uma vida dedicada a propagar suas obras, como tradutoras e promotoras, colaborando com biógrafos e fundando museus para homenageá-los.

Anna Dostoiévski casou-se com um escritor idoso e gastou tudo que levou para o casamento, vivendo de pedir empréstimos para seu sustento e para que o marido gastasse todo o restante em mesas de jogos. Suportava o mau humor e mesquinharia dele, enquanto empenhava joias e negociava dívidas contraídas pelo escritor e sua família. Sofia vivia para os afazeres domésticos e pariu treze filhos de Tolstói, alguns morreram na infância. Dormia tarde da noite, copiando os textos do marido: “À medida que copio, mergulho em um mundo novo repleto de emoções, pensamentos e impressões. Nada me toca tão profundamente como as ideias e genialidade dele.” Chamava Guerra e Paz de filho, e era considerada a babá do marido, embora ela tenha casado com 19 anos e ele, 34. Alexandra Popoff garante que pareciam gratas e “se contentaram a falar ao mundo pelos seus maridos.”

Será que na exaustão das noites escuras, deitadas em suas camas, depois de reescrever, editar e ler os textos dos maridos escritores, teriam algum lampejo de dúvida sobre o caminho que seguiram, o de apêndices dos seus maridos? A ideia de contribuir com obras que seriam um legado para a humanidade foi suficiente em tais situações de incerteza?

No Ocidente, foi diferente, pois ainda no século XVIII as mulheres já começaram a escrever grandes romances e dividir esse campo com os homens. Mas é interessante, quando observamos que, por trás de grandes números da performance masculina e ascensões na escala de trabalho, ainda há um “servicinho” gratuito feito por mulheres. 

Ainda hoje, muitas delas se sentem felizes em contribuir com as carreiras dos maridos. E algumas dizem, inclusive, que isso é feminismo: o direito de decidir o que fazer de suas vidas, inclusive ser suporte para o crescimento do marido. Pois bem. El País, em matéria intitulada “A feminina anti-feminista e o orgulho de ser submissa”, revelou que a despeito de todos os avanços feministas, há mentoras digitais ensinando suas seguidores a adorarem à Deus e aos maridos, e dizem que foram feitas pelo criador com a missão de auxiliá-los. São muitas as páginas “femininas” digitais que valorizam a essência das mulheres (lembro que já rompemos com a visão essencialista no século passado) e que desprezam as pautas feministas.

Como uma mulher casada, ouvi de muitas outras que eu deveria parar de estudar. “Pra quê esse negócio de fazer doutorado, vai ter teus filhos e ser feliz!” Uma delas, de certa feita, assegurou que o próprio feminismo que eu propagava, garantia que elas tivessem liberdade de decidir se preferiam ficar em casa, realizando trabalhos domésticos. O movimento feminista, garota, lutou para que você saísse desse lugar de dependência, e buscasse autonomia e auto-sustento. Só isso te dará, não sei se felicidade, mas ao menos liberdade para ficar ou sair batendo a porta quando quiser. 

Muitas mulheres abrem mão do seu trabalho para viver dos cuidados domésticos e dizem que ficam bem assim. O fato de a mulher ser educada para as áreas tidas como “soft”, que trabalham com cuidados, e se formam em cursos de graduação que não lhes garantem bons salários, muitas vezes faz com que os maridos as convençam que valeria mais à pena ficarem em casa, cuidando dos seus filhos. Tenho observado muito isso. Inclusive, na pandemia, os pesquisadores e estudiosos homens cresceram, consideravelmente seus currículos e pontuações de pesquisa, enquanto as mulheres tiveram uma súbita diminuição.

Claro está que ainda que tenhamos acesso ao mercado de trabalho, as nossas condições de concorrência não são similares às dos homens, uma vez que pesam sobre nossos ombros outras responsabilidades. Silvia Federici afirma que o trabalho doméstico é o pilar de sustentação da produção capitalista, e que a subordinação das mulheres não se deve ao fato desse trabalho ser improdutivo, mas pelo fato de ser não remunerado. 

As escolhas, desde cedo, nos definem e diferenciam o nosso caminhar. Quando arranjei meu primeiro estágio, era muito longe e eu pegava dois ônibus para ir e outros dois para voltar. Meu pai me disse: “filha, te dou esse valor, para que fique em casa estudando.” Ao que respondi prontamente: “pois é, pai, obrigada, mas não seria a mesma coisa que eu trabalhando.” A verve feminista talvez seja essa: nem sempre escolher o percurso que parece mais fácil, mas aquele que precisa ser percorrido!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).