Bemdito

Do samba do Estácio ao blues de Robert Johnson

"Delta Estácio Blues", música de Juçara Marçal e Rodrigo Campos, conta a história de uma mitologia revisitada
POR Leonardo Araújo
O músico norte-americano Robert Johnson (Foto: Divulgação)

Composta por Rodrigo Campos, Delta Estácio Blues, canção que batiza o novo disco de Juçara Marçal, conta a história de uma mitologia revisitada, encenando, em forma de verso, exercício ficcional semelhante ao utilizado por Borges em livros como História Universal da Infâmia (1998).

Na música, os sons criados em parceria com Kiko Dinucci e Paulinho Bicolor, misturando elementos eletrônicos, violão e instrumentos de samba, convocam a atmosfera fantástica desde onde somos convidados a imaginar o encontro entre o músico norte-americano Robert Johnson e Bide, Baiaco e Ismael Silva, responsáveis pela renovação do samba carioca nos anos de 1920 e pela fundação da primeira escola de samba do Brasil, a Deixa falar.

Nascido em 1911 na cidade de Hazlehurst, Mississippi, Johnson foi um músico itinerante, viajando de cidade em cidade, onde tocava em bares, esquinas e pequenos clubes em troca de algum dinheiro que lhe permitisse seguir na estrada. Morto ainda jovem, aos 27 anos, “maldição” que alcançaria outras personalidades da música como Jimi Hendrix, Amy Winehouse, Kurt Cobain, Janis Joplin e Jim Morrison, era considerado um talento nato, possuindo habilidade incomum no violão e também como letrista.

Esse fato, somado ao mistério em torno de sua morte, foi responsável pela criação de uma lenda. Para realizar o desejo de se tornar um famoso músico de blues, Johnson teria vendido a alma ao diabo, na encruzilhada das rodovias 61 e 49. Músicas como Crossroads blues (Blues da encruzilhada), Hellhound on my trail (Cão do inferno no meu encalço) e Me and the devil blues (Eu e o diabo blues) só reforçaram as especulações sobre o trato diabólico. Junto a outras vinte e seis canções, elas compunham todo o catálogo musical do norte-americano, gravado no intervalo de alguns meses em dois estúdios no Texas. Apesar de sua curta existência, o registro foi responsável por torná-lo um dos artistas mais importantes da história da música, tendo influenciado de Muddy Waters a Rolling Stones, passando por Bob Dylan, Robert Plant e Eric Clapton.

Escovando a lenda à contrapelo, no estilo benjaminiano, o que vem à tona, contudo, não é tanto o que a vincula a outras narrativas folclóricas associando talentos prodigiosos a contratos infernais – dizia-se que Paganini conquistou a aptidão com o violino usando o mesmo artifício -, mas a ideia de que um músico negro e pobre como Johnson não teria condições de chegar aonde chegou a menos que contasse com a ajuda de um evento extraordinário. Além disso, tenta enquadrá-lo em uma mitologia branca e ocidental, segundo a qual a encruzilhada surgiria não como espaço de potência, mas de perdição. Território de forças sombrias, dirigidas, conforme a iconografia cristã, por entidades maléficas e causadoras de destruição.

Avesso a tudo isso, Delta Estácio Blues vai buscar outra explicação para o talento de Robert, atribuindo-o à reunião ficcional do bluesman com os músicos do Estácio, famoso bairro carioca associado às origens do samba, “Robert Johnson escreveu / Vinte e nove canções / Era um homem medíocre / Tocando violão / No Estácio pagão / Bide, Baiaco e Ismael / Fez trato com os três malandros / E desapareceu / Alguns anos no breu e reapareceu / Delta Blues Mississippi / Cultua um novo deus”.

O “encontro fantástico entre dois afluentes diaspóricos”, como escreve o jornalista GG Albuquerque para o site Monkeybuzz, ativa um dispositivo imaginário pelo qual fatos acontecidos no passado ganham outra versão, a fim de restaurarem uma verdade histórica: a de que blues, samba, reggae, funk, rock, jazz, soul, hip-hop, entre tantos outros sons e estilos musicais, tiveram sua origem em África, apesar das tentativas de apagamento e de apropriação cultural levadas à efeito pela branquitude. Ao visitar o samba, portanto, o blues torna-se ainda mais vivo, em razão de ambos serem afluentes do mesmo grande rio.

Além disso, a refabulação de parte da história de Johnson acaba por deslocar o mito fáustico de que teria pagado com a vida o preço de viver no “pecado”. Pois, na verdade, o bluesman foi mais um exemplo de um artista negro emparedado pelo mundo branco. Sua música, nesse sentido, serviu como uma maneira de romper o silêncio imposto a ele e a outros corpos negros. De criar uma possibilidade de liberdade em uma sociedade que o queria preso, à margem.

No artigo Do emparedamento solitário aos planos de voo: caminhos em Paulo Colina, Gustavo de Oliveira Bicalho mostra como esse embate atravessa a produção de artistas afrodiaspóricos, compondo um tropo recorrente em suas obras, por meio do qual buscam estabelecer alianças ancestrais que rompam as barreiras sociais e as feridas causadas pelo racismo. Dessa forma, em que pese a continuidade da senzala-favela, o poeta e escritor negro Paulo Colina (1984) continua entoando, “Há que se decidir, senhores, / pois mesmo entre as noturnas sombras / desse imenso véu, / as asas negras do meu nariz / continuarão insistindo em ganhar / o espaço aberto dos céus”. Como Johnson, Colina morreu jovem, com apenas 49 anos, vítima de mal de Chagas, doença que afeta em sua grande maioria pessoas pobres. No entanto, segundo Bicalho, a verdadeira causa mortis delefoi o desemprego contra o qual o se bateu por quase dez anos.

Apesar de partilharem o destino de uma morte precoce, em razão do emparedamento – subjetivo, simbólico, afetivo, econômico, existencial – imposto aos corpos negros nas metrópoles modernas, os cantos de Johnson e Colina, como aves noturnas cruzando os céus, continuam produzindo ecos capazes de construir uma temporalidade sankofa, a qual, segundo Abdias do Nascimento, diz da “possibilidade de voltar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

Ao fazer o tempo dobrar-se sobre si mesmo, atravessando história e geografia, para imaginar o encontro entre os músicos, Delta Estácio Blues conta não só da partilha estabelecida entre duas fontes culturais – o blues e o samba –enraizadas em África e na experiência diaspórica, mas recorre à reinvenção do passado como forma de frutificar o presente, mesmo diante de um horizonte que se estreita cada vez mais. Com isso, a canção parece seguir o conselho de Colina, “Quando sonhamos / com o horizonte,/ a precisão é fundamental”, fornecendo coordenadas para um plano de voo seguro.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.