Bemdito

O dia em que a armadura pesou

Era a dor que eu queria que cessasse, mas nunca quis morrer - se quiser sobreviver, seja forte
POR Jamieson Simões

Para sobreviver, é preciso ser “cabra valente”, e o objetivo é não se tornar alvo ou vítima

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

Acho que na formação de todo menino nordestino tem esse jeito violento de lidar com os dilemas da vida. As histórias dos “cabras” valentes que enfrentavam a vida e os donos do poder no sertão. O capitão Virgulino com as suas façanhas, sua inventividade e sua crueldade estava sempre nas conversas do mais antigos. Já menino maior, acordei com um burburinho na porta de casa e soube que tinham matado um homem e deixado na porta da casa vizinha à nossa. Lembro-me nitidamente de um compadre da minha irmã mais velha que foi esfaqueado, colocou as vísceras num chapéu e foi andando até o pronto-socorro. Essas histórias e acontecimentos me passaram uma mensagem: se quiser sobreviver aqui, seja forte.

Por forte, entendi ser aquele que não poderia ser o alvo ou a vítima. Tem um ethos guerreiro atravessado na minha formação que em si não é mal, manteve-me vivo até aqui. Estou revisitando minha formação para chegar num momento muito específico da minha vida, na verdade, um fato: carregar essa armadura emocional de proteção, esse espírito em alerta contra o racismo, e ainda lidar com meus erros e incoerências, pesa.

Há uns anos atrás, eu estava quebrado em todas as áreas da vida, mas mantinha as entregas do trabalho em dia. O resto estava aos frangalhos. E eu caminhava pela cidade assim, como um pária. Qualquer pessoa que se aproximasse, já considerava uma ameaça. Passe mais tarde. Ser forte cansa. Carregar essa armadura era insuportável.

Fui definhando. A fortaleza que eu transparecia ruía a cada dia. Até que um dia aconteceu o encontro inevitável. Eu tenho muita cautela com a água, mas naquele dia, nadei rio a dentro até cansar. Mergulhei. O Silêncio. A luz entrando, atravessando os metros d’agua acima de mim. Parecia um útero. Em paz e silêncio. Escutava as batidas do meu coração. Paz e silêncio. Eu pensei em morrer ali mesmo. Entregar-me e deixar a vida escorregar. O fim de toda a dor estava ali como uma porta que eu poderia abrir. Pensei na outra dor. Em alguns segundos, a água invadiria meus pulmões, eu me debateria e morreria com dor.

Era da dor que eu fugia. Nunca temi a morte. É a dor que eu evito ao máximo. De súbito, comecei a nadar rumo à luz do sol. Desesperadamente, queria a vida, queria fugir da dor evitável. Comecei a engolir água e me debater. Já era tarde e, nos últimos segundos (que pareciam eternos), enquanto lutava para viver, uma decisão nasceu dentro de mim. Ali o afogamento era uma realidade que se impunha e não sei como mantive a calma para deixar a correnteza me levar. Aproveitei para respirar. Tossia. Vomitava água salgada que queimava minha garganta e narinas. Calma, minha alma. Calma.

Passados dois dias procurei ajuda especializada. O psiquiatra ajudou a me estabilizar. O trabalho duro foi – e é – meu. Radicalizei algumas decisões. Cortei algumas relações. E realizei o maior trabalho da minha vida. Fiz o que pouquíssimas pessoas conseguiriam. Nunca quis morrer. Era a dor que eu queria que cessasse.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.