Bemdito

O que significa um nome?

O que "Romeu e Julieta" nos ensina sobre nome, identidade e intimidade
POR Camille C. Branco
Cena do filme "Romeu + Julieta", de Baz Luhrmann (Foto: Divulgação)

Depois de quase dois anos de isolamento social severo, neste Halloween eu e alguns amigos vacinados decidimos nos reunir em um apartamento neste sábado, em um dia de montação — para lançar mão do precioso vocábulo drag queen. Eu insisti que me vestiria como a Julieta no filme de Baz Luhrmann. A personagem me parece aterrorizante o suficiente: a inocência, a intensidade e a pureza do amor, do primeiro amor, culminam em um duplo suicídio. Não sei se alguém vai entender a referência, mas enquanto providenciava asas de anjo com elástico para os ombros, purpurina e uma roupa branca, decidi, como boa pessoa propensa a obsessões, revisitar o Romeu e Julieta de Shakespeare.

Não é muito bem visto que se goste desta peça, em especial. Hamlet, por exemplo, inspira mais respeito. Harold Bloom afirmou que, em Hamlet, Shakespeare reinventou o humano. Mas Romeu e Julieta? Talvez uma das mais conhecidas histórias de amor de todos os tempos? Romântico demais. Sentimental demais. Frívolo demais. Batido demais. No entanto, enquanto retornava à peça do bardo, cujas falas muitas vezes recitei de cor, me deparei novamente com a pergunta feita pela jovem protagonista, que inquietaria não somente teóricos da literatura, como também filósofos da linguagem, teólogos, psicanalistas: O que é um nome?

Julieta faz este questionamento porque nomes como Montecchio e Capuleto, os nomes de famílias inimigas, parecem dotados de força o suficiente para distanciá-la do amado. Ela se rebela contra esta força: “Meu inimigo é apenas teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome?”.

A rebelião de Julieta, sua desobediência, reside no fato de que um nome, na verdade, significa muita coisa. Expulsos do paraíso pelo pecado original, na cosmologia cristã os humanos estão condenados a vagar operando com este dispositivo sempre insuficiente, o da linguagem. No meio das palavras existe sempre, melancolicamente, o jamais-dito, o irrepresentável. Mas as palavras também são os restos do milagre negado com nossa expulsão do Éden, a fonte de magia que resta em um mundo desencantado.

Milan Kundera afirma que é por meio das palavras que um romance acessa aspectos da existência humana, na forma de beleza. É esta beleza que Julieta invoca: Montecchio e Capuleto significam muito pouco, porque entre ela e Romeu algo maior foi erigido. A intimidade do amor de ambos produziu um monumento de linguagem, onde as regras sociais e os chamados de obediência não possuem soberania. Romeu e Julieta, quando se apaixonam, constroem algo que se parece demais com liberdade. Selvagem e indomesticável. Não é por acaso que o amor de ambos termina em tragédia: aquele enlace feito de palavras ameaçava, como uma espécie de monstro, todo o logos dominante. A punição precisaria mesmo ser exemplar.

O mesmo Kundera defenderá em seu A arte do romance que “todos os grandes temas existenciais que Heidegger analisa em Ser e Tempo, julgando-os abandonados por toda a filosofia europeia anterior, foram desvendados, mostrados, esclarecidos por quatro séculos de romance. Um por um, o romance descobriu, à sua própria maneira, por sua própria lógica, os diferentes aspectos da existência.” Eu estenderia as palavras do autor à literatura de maneira geral e a Romeu e Julieta de modo particular.

O poder de nomear, o efeito provocado pelas palavras na existência humana seriam objetos de investigação de um imenso contingente de produção teórica no Ocidente. É algo que Julieta enfrenta a seu modo: combate palavras que julga mesquinhas e impróprias não com silêncio, mas com outras, que considera melhores — palavras de amor, sem as quais, de acordo com a poética das epístolas paulinas, nada seríamos, mesmo que dominássemos a língua dos homens e dos anjos. Em Coríntios, São Paulo afirma que quando era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino; mas, logo que chegou a ser homem, acabou com as coisas de menino. O amor passa a ser o assunto central quando se amadurece. O assunto sagrado.

Continuamos buscando por novos nomes porque é o que nos sobra fazer. E, com isto, fazemos surpreendentemente muito. Pouco depois da festa de Halloween com meus amigos, me sentarei em frente a uma tela de celular, fone nos ouvidos, caderno em mãos, para defender, diante de uma banca de cinco professoras mais experientes do que eu, a pertinência das milhares de palavras que amontoei como tese de doutorado. Minha forma possível de magia. Mas Kundera me retorna à mente quando afirma: “Estava esquecendo que Deus ri quando me vê pensar”.

Por isso, antes da banca, um rito mais simples e igualmente sério: me vestir como a menina Julieta, beber em homenagem à sua coragem e à tristeza da solução de seu destino, colocar asinhas de papelão e, com purpurina no corpo, honrar humildemente o seu desejo de que Romeu, ao morrer, fosse convertido em pequenas estrelas, deixando a face do céu tão bela que o mundo inteiro se apaixonaria pela noite.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.