Bemdito

Bruxas, putas e foras da lei #3

O controle das mulheres passa pelo controle da produção e execução das leis
POR Juliana Diniz
Ilustração de Charles Lessa

O controle das mulheres passa pelo controle da produção e execução das leis

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Nos dois capítulos anteriores da série, trouxe alguns exemplos de como a construção social da feminilidade alimentou ao longo de séculos uma intensa mistificação sobre o que é a mulher, um trabalho que ganhou força graças à vínculo profundo entre simbolismo e censura institucional. Discursos difusos que fortalecem o imaginário individual e coletivo são potencializados quando se materializam em ações contundentes de repressão com aparência de legitimidade, por isso os espetáculos macabros da inquisição têm um lugar especial na história das mulheres e continuam a provocar efeitos tanto tempo depois de sua encenação.

Apesar do ímpeto com que as instituições conservadoras do Ocidente medieval, sobretudo a Igreja, domesticaram as mulheres, restringindo sua esfera de autonomia, há sempre uma zona de sombra em que a norma não parece surtir seu efeito castrador – uma zona “livre” em que a experiência do gozo encontra lugar, um campo para  expressão da sexualidade e do desejo de subverter. Essa potência que não pode ser contida fica evidente em histórias sobre espaços clandestinos como os conventos, um lugar da norma e de violação da norma, como ensinam os freiráticos que mencionamos no segundo capítulo.

A simples possibilidade de que a lei seja violada nos dá a dica de que o Direito e a normalidade são produtos da cultura – o saldo de uma correlação de forças em que o dominante impõe sua vontade sobre o dominado. Ao contrário do que a cultura jurídica secular nos quer fazer crer, os fundamentos mais profundos de qualquer sistema de normas estão muito mais relacionados a aspectos políticos e econômicos do que estritamente éticos. É a lei que legitima a relação de dominação, é a lei que define quem pode e quem não pode desempenhar certos papeis e ocupar certos espaços, é a lei que valora comportamentos em desejáveis (e por isso protegíveis) e indesejáveis (e por isso censuráveis). A lei, que legitima a punição, é desde sempre o saldo de um poder que se impõe como triunfante em uma certa conjuntura social.

Antes do advento Modernidade, ainda nas profundezas do período medieval, a lei aparecia na boca de Deus, através dos mistérios da dogmática religiosa. Lentamente, foi se secularizando, encontrando justificativas laicas para as proibições que, no passado, eram explicadas na cosmologia própria das narrativas bíblicas. Eva precisou ser ressignificada, a contenção da feminilidade continuava necessária, mas por outras razões.

É um processo que acompanha o surgimento das cidades, da vida burguesa e urbana, do desenvolvimento do capitalismo industrial.  O sentido de família que conhecemos hoje surge aí, a célula-mater de uma sociedade saudável, o espaço onde o homem provedor se reenergiza e se recupera para as batalhas da vida pública. A mulher burguesa, recolhida à domesticidade, passará a habitar espaços forçosamente subalternos, seja na clausura da maternidade e do casamento, seja no desempenho de tarefas remuneradas, mas pouco valorizadas, como a limpeza ou suporte do lar.

Para que essa estrutura se mantenha e se transforme, a lei precisa cumprir seus papeis legitimadores – são os códigos civis que organizam a proteção estatal da família, definem os deveres conjugais, o domínio do pátrio poder do homem sobre a esposa e os filhos, só para mencionar alguns aspectos. O direito penal também terá funções importantes a cumprir nessa tarefa domesticadora – é ele que recuperará mais uma vez a cisão fundamental das possíveis identidades femininas. A puta, a adúltera, a transgressora, que nunca poderá ser vítima do crime, antes criminosa ou, quando muito, uma pobre diaba que sofre as penas sociais do seu desvio. Por isso o crime sexual cometido contra a prostituta é menos punível segundo a perspectiva do direito penal que vigorou até outro dia – porque esse crime é ele próprio uma legítima punição pelo desvio moral da mulher. Por outro lado, a mulher honesta é aquela a quem o estado deve proteger, aplicando penas mais severas ao agressor quando seu corpo é mutilado, seviciado, sofrido. A síntese da mulher honesta é a mãe, a mulher cumpridora dos seus deveres, a mulher que carece de proteção, portanto.

Em uma linguagem nova, se reproduzem papeis e discursos de muitos séculos, que, em grande medida, são causa potencializadora de uma persistente desigualdade, uma hierarquização social pressuposta. A saída não é a recusa da transformação, porque ela é possível, a saída é uma reflexão profunda sobre a lei.

Quem faz a lei, para atender que finalidade, utilizando que critérios de julgamento, para ser aplicada por quem e sob que condições formais?

Todos esses pontos constituem o cerne da liberdade a ser verdadeiramente alcançada pelas mulheres. Por isso é tão significativa a presença feminina em espaços formais como os parlamentos, os tribunais, as universidades. São os espaços institucionais de gestação de um certo sentido de normatividade. Espaços ainda masculinos, espaços ainda hostis a muitos questionamentos.

É somente uma reflexão profunda sobre como os homens historicamente controlam as respostas sobre a lei que nos permitirá encontrar alguma saída, uma rota de fuga. Um resgate, quem sabe, de uma concepção de moralidade mais igualitária, mais humana, mais condizente com um senso dignidade que alcance indistintamente os corpos masculinos e femininos.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.