Bemdito

Vacina contra o batismo de sangue

Bolsonaro, Agamben, Igreja Católica e os tipos de batismo médico, religioso e científico deste tempo pandêmico
POR Ricardo Evandro
The Baptism of Christ (Joachim Patinir)

De todos os textos polêmicos de Giorgio Agamben sobre a pandemia, alguns me deixaram perplexo. E não só por causa do modo como o filósofo italiano pormenorizou a pandemia de Covid-19, quando pouco ou nada se sabia sobre a doença. Aquele foi um momento em que os próprios órgãos científicos negavam a existência de uma pandemia, ao menos na Itália do início do ano de 2020. 

Em outros momentos, tive a chance de tentar esclarecer isso, como no texto Ainda Agamben, que publiquei em 2 de setembro de 2020. Os textos de Agamben foram muito criticados e lidos com muita rejeição no Brasil, chegando a haver acusações de que o filósofo seria “conservador”, comparável a Jair Bolsonaro, e até mesmo “neoliberal”.

No texto de 20 de abril de 2020, chamado A vida nua e a vacina, publicado no blog da editora Quodlibet, Agamben retoma a categoria central de sua ontologia política desenvolvida na sua coletânea de textos Homo sacer: a vida nua. Ele explica que a vida nua é o limiar entre o humano e o animal, a vida que está entre a mera vida corporal e a vida política e, juridicamente, qualificada. Assim, se a tradição nos diz que o ser humano é um animal diferente dos demais devido à sua racionalidade, à capacidade de falar, de ter linguagem, isso só se dá porque há uma articulação que exclui, mas que, ao mesmo tempo, inclui a nossa animalidade.

A vida nua é a zona de indistinção entre a mera vida biológica e a vida social, “que passa necessariamente no homem”. Ocasionalmente, na história, isto se revela, desocultando-se tal condição: a de que trazemos com a nossa humanidade “racional” o mero corpo animal, sem direitos, sem garantias; e, eventualmente, nesta mesma história política, saímos da virtualidade de sermos todos passíveis de perda das nossas qualidades, restando-nos ser como um tipo de animal que pode ser morto, mas sem que seja considerado assassinato, homicídio.

Como diz Agamben, a vida nua é “uma abstração e uma virtualidade, mas uma abstração que se torna real ao se incorporar a cada vez em figuras históricas concretas politicamente determinadas: o escravo, o bárbaro, o homo sacer, que qualquer um pode matar sem cometer crime, no mundo antigo; o enfant-sauvage, o homem-lobo (…)” e também “(…) o cidadão em estado de exceção, o judeu no campo de concentração, o homem em coma na sala de reanimação (…)”.

Com isso, Agamben pergunta: qual seria a figura da vida nua durante a atual crise da Covid-19? Sua resposta é: “não é tanto o doente isolado tratado”, mas, sim, é “o infectado” ou o “doente assintomático, isto é algo que todo homem é, virtualmente, mas sem o saber”.

Disso, Agamben passa a avançar na sua leitura polêmica e radical sobre a pandemia, afirmando que essa vida, que nem tem saúde, nem está doente, “pode ser privada de suas liberdades e sujeita a proibições e controles de todo tipo”. E diz mais, concluindo que essa vida, virtualmente doente e assintomática, flutua entre a doença e a saúde e que sua única identidade “é a de ser destinatário de um teste e da vacina, que, como batismo de uma nova religião, definem a figura invertida daquela que antes era chamada de cidadania”. 

Em outros termos, o filósofo italiano alerta para como a vacina, hoje, é um tipo de marca, sinal da nossa iniciação a um mundo diferente. Ele faz referência àquilo que tratará nos textos posteriores a esse, quando falava sobre como não apenas o capitalismo é a nova religião (Benjamin), mas também é a medicina uma religião. Sendo assim, no atual contexto pandêmico, de política de vacinação, é a vacina um novo batismo, enquanto iniciação a um mundo de garantias, de retomada de liberdade(s) – como quando se é batizado por uma igreja cristã, deixando-se uma vida para trás, escravizada pelo pecado, para se ganhar a liberdade em Cristo.

Diferentemente do batismo cristão, enquanto iniciação a uma outra vida, mas por uma religião biopolítica, científica e sanitária, tendo os médicos como sacerdotes, Agamben vê a vacinação como algo que “não é indelével, mas necessariamente provisória e renovável, porque o novo cidadão, que deverá sempre exibir a certidão” – ou, no caso brasileiro, o “cartão de vacinação” – “já não tem mais direitos inalienáveis e indecidíveis”. Assim, em vez de nova vida ou de direitos, dados pelo batismo ou pela cidadania, a vacina geraria “apenas obrigações que devem ser incessantemente decididas e atualizadas”.

Em outro texto desta coluna, Delírio imunista, tentei argumentar sobre como a recepção italiana da biopolítica de Foucault, da qual Agamben e também Roberto Esposito fazem parte, não daria conta de ler a singularidade do caso brasileiro. Lembro mais uma vez que, por aqui, o governo federal negligenciou a compra de vacinas, apostando na estratégia de se alcançar a imunidade de rebanho e investindo em medicação já sem comprovação científica sobre seus efeitos no combate à pandemia da Covid-19 no país.

Covid-19 no Brasil e a tanatopolítica

Toda esta tanatopolítica (política de morte) foi feita em nome das liberdades individuais, de uma suposta ideologia liberal, mas que, ironicamente – para não dizer hipocritamente –, é proferida pelo governo mais militarizado da história da República brasileira. Essa militarização do atual governo supera até mesmo aquela praticada na ditadura militar (1964 a 1985), pela qual o atual presidente Jair Bolsonaro é saudoso de paixão.

No Brasil, a medicina não é uma religião, nem a vacina é vista pelo governo federal como um batismo. Mas isso não se deve a uma suposta leitura crítica de um suposto excesso de medidas excepcionais em que os governos estaduais, por oposição ao governo federal, de Bolsonaro, estariam incorrendo. Bolsonaro e sua equipe não são “agambenianos”, como se poderia pensar do ex-chanceler Ernesto Araújo, ao citar Agamben, confusamente ao seu favor, no tosco artigo Chegou o comunavírus.

Ameaças de golpe pelos seus filhos parlamentares à tentativa de declarar estado de sítio pelo Presidente – episódio que fez com que os comandantes das Forças Armadas abandonassem seus cargos; abuso do Orçamento de Guerra; e até mesmo a suspeita pela atual Comissão Parlamentar de Inquérito de financiamento obscuro de empresas farmacêuticas para compra e uso de cloroquina e Ivermectina – medicamentos comprovadamente ineficazes, até então –, fazendo de Manaus a cidade-cobaia de um experimento de imunização de rebanho: é bem óbvio que o governo Bolsonaro não é nenhum governo libertário, tampouco anarquista.

Mesmo na direção contrária do atual governo italiano, que usou de medidas excepcionais fortes no combate à pandemia, isso não significa dizer que a política sanitária antipandêmica de Bolsonaro tenha sido insurgente, rebelde ou anti-estado. Nada mais ocorreu do que o exercício de puro neoliberalismo, nascido na tradição de quem forjou o disposto do estado de exceção. 

É apenas o colono-capitalismo brasileiro em atividade, dando seguimento à posição do Brasil diante do capital internacional, enquanto grande fazenda extrativista do mundo – onde se revelam, na proporção singular de cada caso, as vidas nuas dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e dos trabalhadores urbanos, dos professores das universidades, cientistas, jornalistas e dos fiscais e ativistas ambientais, como obstáculos para a marcha ao “progresso” neocolonial brasileiro.

Hoje, 18 de junho de 2021, vou tomar a vacina da Covid-19. Não sei de qual fabricante. Pode ser que isso seja meu batismo médico-científico. Como ocorreu no Ceará, com seus professores, pode ser que disso surja um termo de obrigatoriedade para o retorno às aulas presenciais. 

Mas a marca de distinção, de dignificação, que trarei comigo, ao ser vacinado, também é um ato de desobediência, de renúncia à política de morte do atual governo brasileiro. Um ato que visa evitar a minha morte ou aliviar os sintomas no meu mero corpo doente. E fazer isto, no Brasil, é um não-colaborar com política que só tem como finalidade a salvaguarda da “economia”, que, para Bolsonaro, “é vida”.

Numa tentativa de subverter Agamben, não totalmente contra ele, e sim a partir dele, considero seus alertas contra o estado de exceção que se tornou regra, e endosso o convite a outro uso do corpo, a uma outra forma de se viver, desativadora dos mecanismos que querem a minha morte em nome do capitalismo e de seu deus, o Dinheiro. Só que, para tanto, o uso do meu corpo para o batismo biopolítico, hoje, será um modo de dizer à política de morte no Brasil – que se atualiza desde a Colonialidade, do Império e na República brasileira, com suas ditaduras civis-militares: “Eu preferiria não”.

Encerro este ensaio lembrando o livro de Frei Betto, de 1982, quando denunciou as sessões de tortura cometidas pelo estado brasileiro contra Frei Tito, durante sua prisão e interrogatório na última ditadura militar brasileira, exercidos pelo delegado Fleury, sob comando do Coronel Ustra. 

A vacina que tomo hoje é pela água que injetarão em mim. No mês de comemoração de São João, o Batista, a vacina que tomo hoje é o meu segundo batismo. O batismo como renúncia e repúdio da imposição de um outro batismo, que insiste em retornar pela violência, pelo fascismo, retendo qualquer mudança no Brasil: o batismo de sangue.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.